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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

Os dilemas de Lula: Flávio Dino, Gonet e a representatividade de minorias na política

Para muitos, a posse de Lula foi apenas um ato ritual e sem consequências
03/12/2023 | 08h55

Para muitos, a escolha de Lula por Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para Procuradoria-Geral da República (PGR) foi uma grande decepção. Ninguém esquece a posse de Lula, com o simbolismo da representação de todos os excluídos e esquecidos deste país. Para muitos, a posse foi apenas um ato ritual e sem consequências. O assunto não é, no entanto, tão preto no branco como se imagina, depois de mais de trinta anos de hegemonia global do identitarismo como forma hegemônica das lutas dos dominados. Quando se tem um presidente negro, como Obama, que ocupa a Presidência, e não faz nada de decisivo para os negros e pobres que o elegeram, ele se torna mais um branco do establishment que engana seus seguidores e mostra o lado falseador e ideológico do tema da representatividade.

Lula tinha certamente na cabeça o caso de Joaquim Barbosa, o primeiro negro do STF posto no cargo por ele, que comandou a temporada de caça ao PT e seus principais líderes no episódio do mensalão. Um ensaio do golpe de 2016. E o fez abrindo a senda autoritária a partir de uma intepretação abstrusa da teoria do “domínio do fato”, que depois seria continuada pela “Lava Jato”, baseada em denúncias sem prova. O caso de um negro que teve origem pobre, mas que encampou como poucos o falso moralismo da corrupção, que é o dispositivo de poder da elite brasileira e de sua imprensa há mais de cem anos para defenestrar qualquer governo popular.

Além disso, temos as contradições típicas, no tema do identitarismo e da representatividade, de uma ideia baseada na ascensão pessoal dos indivíduos mais capazes das classes populares. E sabemos que não há combate à injustiça e à desigualdade pela mera ascensão social individual. Uma pequena parcela dos negros, cerca de 1%, atinge os cargos de direção e comando e ajuda inintencionalmente a fomentar a mais cruel meritocracia. Agora os bancos e a Rede Globo podem dizer: veja como temos negros entre nós! Combatemos o racismo e somos pela igualdade. Essa é a mensagem. E os 99% que continuam na marginalidade e na exclusão? Ora, resta a eles servirem de alvo para a mais cruel justificação da ordem desigual e injusta. Afinal, se não estão lá em cima é por culpa própria, preguiça ou burrice, afinal, outros mais diligentes conseguem. O identitarismo é ideologia de um capitalismo financeiro que deixa todo mundo pobre, mas, como ainda precisa do voto dos oprimidos, precisa fingir que abraça as bandeiras democráticas clássicas da igualdade e da fraternidade.

Isso significa que não devemos ter negros no STF? Pelo contrário. Defendi, inclusive, em jornais a indicação de um negro ou negra para o STF. A visibilidade deste tipo de cargo é fundamental para confrontar um sistema de Justiça racista que oprime preferencialmente negros e pobres. É uma forma de mostrar à sociedade o funcionamento seletivo da Justiça entre nós, dirigida a criminalizar e estigmatizar a vítima da opressão social.

Mas, para que isso aconteça, temos que pensar a raça ou o gênero em associação com as lutas maiores e mais importantes da universalização da redenção dos oprimidos. Não basta ser negro ou mulher. Tem que ser uma mulher que tenha vivido e combatido a violência de gênero e um negro que tenha pautado a sua vida nas lutas democráticas e de emancipação dos negros e dos pobres. Essa me parece a questão principal neste debate. E certamente existem muitas mulheres e negros que preenchem esse critério. Seria, portanto, fundamental uma mudança de postura que leve em conta o ganho em aprendizado social que o povoamento com negros e mulheres capazes e comprometidos nos cargos de direção do Estado e da economia simboliza. Os Obama e Joaquim Barbosa da vida devem servir como lição e não como justificativa do racismo e do sexismo.

 

 

 

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