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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Os inquisidores de ontem e de hoje

Não há nada mais assustador aos “inquisidores neoliberais” de hoje do que sujeitos que lutam por justiça social
05/01/2024 | 05h00

Outro dia coloquei em contato dois queridos amigos. Um deles (de longa data), Arnaldo Lemos, foi padre na década de 1960. Por defender a Doutrina Social da Igreja Católica e a opção pelos pobres, foi acusado de comunismo e perseguido. Diante das brutalidades da Ditadura Militar e diante de certas posturas autoritárias da Igreja, Arnaldo largou a batina, mas – inspirado pelo “Pacto das Catacumbas” –  nunca abandonou sua luta por justiça social. O outro amigo, um frade dominicano, não apenas lutou contra a Ditadura, como denunciou suas iniquidades no clássico e premiado “Batismo de Sangue”, livro (e filme) obrigatório para a compreensão do Brasil Contemporâneo. Trata-se de Frei Betto. Arnaldo dizia a Betto que nos idos dos anos 1960 estiveram juntos em Belo Horizonte e que lembrava do jovem Carlos Alberto (Frei Betto), então adolescente e estudante, nas reuniões da JEC (Juventude Estudantil Católica).

Enquanto os dois caros mestres eram apresentados e trocavam suas experiências de mesma jornada na “Igreja da Teologia da Libertação”, um grupo de vereadores liderado por Rubinho Nunes (famigerado “ex-membro” do MBL), protocolava na Câmara dos Vereadores de São Paulo um pedido de CPI contra o Padre Julio Lancellotti, argumentando que Lancellotti se beneficia da “operação de ONGs esquerdistas na Cracolândia.” Uma onda de indignação contra o grupo de vereadores e em solidariedade ao “Vigário Episcopal para o Povo da Rua” (Julio Lancellotti) tomou conta das redes sociais. “Protejam o Padre Julio” foi o lema que viralizou e que colocou mais uma vez na berlinda não somente a necessidade de combater a pobreza, o preconceito, a aporofobia e a desigualdade sem fim que marca uma das maiores cidades do mundo, mas o debate de longa duração que envolve a História da Igreja Católica e de muitas igrejas cristãs. Afinal, muito antes de “Inquisidores” como Rubinho Nunes e cia, séculos antes, milhares de pessoas enfrentaram a ira do “Tribunal do Santo Ofício” (Santa Inquisição).

No mesmo instante em que tudo isso ocorria na Câmara dos Vereadores e nas redes, minha cabeça de historiador conectou imediatamente a trajetória dos três sacerdotes aqui mencionados (cada um à sua maneira). No fim das contas eles são parte de uma única história: eles (Arnaldo, Betto e Julio) combatem, desde longa data no século XX, as forças reacionárias da Extrema Direita. Numa perspectiva de longa duração, os três sacerdotes representam uma luta secular entre os Inquisidores do Santo Ofício e os “hereges” de ontem e de hoje.

É bem verdade que o “Tribunal do Santo Ofício” – responsável pela perseguição, tortura e execução de milhares de pessoas ao longo da História Medieval e Moderna – mudou muito ao longos dos séculos. Digamos que os “Torquemadas” de ontem perseguiam aqueles que fugiam dos dogmas e regras da Santa Igreja: as Bruxas, os Judeus, os convertidos, os muçulmanos, enfim, todo tipo de “canhoto” que não se adequasse aos paradigmas de parte do Clero Secular e sua luta fratricida contra parte do Clero Regular. O leitor ou a leitora que quiser ver isso encarnado num bom livro ou filme, basta ler (ou assistir ao filme), “O Nome da Rosa”, do italiano Umberto Eco, um clássico que faz a gente se perguntar se ainda estamos naquele mosteiro medieval no norte da Itália, onde crimes horrendos contra “a liberdade do riso” eram cometidos em nome de Deus. Eu mesmo vi de perto um “Bernardo Gui” ou um “Venerável Jorge” contemporâneos, que viram em mim a heresia do riso e da liberdade. Sim, os inquisidores ainda existem. Quisera eu ser o Sean Connery para combatê-los.

Em todo caso, os Inquisidores de hoje, a despeito da defesa anacrônica dos dogmas do passado, estão muito mais interessados em dinheiro do que na correção da fé. Afinal, não é o Capitalismo a religião do mundo? Não foi o próprio Papa Francisco que já escreveu sobre isso e condenou a ganância sem fim dos arautos do Capital? O quanto a “Igreja da Libertação” será capaz de resistir contra os “Nunes Torquemadas” de hoje? Afinal, qual o efetivo propósito da Igreja? Estado principesco e tirânico ou a Comunhão efetiva do “Bom Pastor”? Vão enfrentar também internamente e efetivamente os Torquemadas ou não?

A ator Sean Connery em cena de “O Nome da Rosa”, filme de Jean-Jacques Annaud (1986). Connery viveu o personagem fictício Willian de Baskerville, do livro de Umberto Eco. O frade franciscano desafiava os inquisidores e investigava os misteriosos crimes no mosteiro medieval.

Voltando à ação dos três sacerdotes em questão (Arnaldo, Betto e Julio), não foram (são) eles perseguidos (interna e externamente) por cometerem a “heresia” de lutar por justiça social? Não há nada mais assustador aos “inquisidores neoliberais” de hoje do que sujeitos que optam pela coletividade, pelo efetivo amor ao próximo, pela luta constante por justiça social. Lutemos contra os inquisidores de ontem e de hoje, seus olhos vermelhos de dogma e ganância são estruturais e não vão acabar tão cedo. Dia desses, Leonardo Boff e Galileu Galilei (do além) me disseram: “Lindener, nem tudo é tão novo quanto parece!”

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