“Uma mudança estrutural não é simples ou rápida. É uma estrutura milenar que sempre excluiu as mulheres e é dominada por homens, o curto tempo de um papado é insuficiente para alterá-la. Nenhuma outra instituição no mundo está autorizada a excluir pessoas por serem mulheres, mas a Igreja Católica sim”. Assim define Denise Mascarenha, coordenadora-executiva da organização Católicas pelo Direito de Decidir, mestre em Políticas e Públicas, doutora em Sociologia e Pesquisadora sobre Igreja Católica e as barreiras ao aborto legal no Brasil.
Para ela, o papa Francisco mudou o perfil do papado, abrindo as portas para o debate franco e se posicionando em temas importantes como a emergência climática ou a guerra em Gaza. Mas principalmente nas pautas de gênero, a igreja católica continua sem mudanças significativas.
Sobre a escolha do novo papa, Denise fala do receio em ver uma nova figura ultraconservadora e próxima da extrema direita emergir.
“O maior representante da extrema direita global, que é o Trump, tem interesse em intervir no Conclave. Também soubemos de uma visita ao Vaticano do vice-presidente dos EUA no domingo de Páscoa”, avalia. “Este interesse de Trump nos rumos do Vaticano demonstra o quão a Igreja Católica segue sendo poderosa e influente e o quanto a extrema direita quer retomar este poder estratégico. Não é segredo o quanto grupos conservadores católicos se sentiram contrariados com o papado de Francisco, alguns chegaram ao cúmulo de declarar que não o reconheciam como papa. Obviamente agora veem a chance de retomar a hegemonia do discurso católico com o apoio da autoridade papal”.
ICL Notícias — O papa Francisco está sendo homenageado como alguém que trouxe mudanças progressistas para dentro do Vaticano. Isso também aconteceu com relação a pautas de gênero como aborto e aceitação da comunidade LGBTQIA+?
Denise Mascarenha — O papa Francisco humanizou o papado, não a Igreja Católica. Ele possuía características que agregava quem a hierarquia afastava. Um papa que no primeiro pronunciamento não abençoa a multidão que está presente na Praça São Pedro, mas pede que essa multidão o abençoe.
Que ligava diariamente para padres em Gaza para ouvir sobre o povo palestino. Que recebeu de uma integrante jovem de Católicas pelo Direito de Decidir da Argentina o lenço verde — símbolo da luta pela legalização do aborto — após um diálogo franco. Que afirma que são as mulheres que movem o mundo e que o casamento homoafetivo merece bênçãos porque Deus nos fez quem somos; que recusa o luxo dedicado à função. Então essas são características do papa Francisco. No Conclave, dependendo do perfil escolhido, pode-se alterar consideravelmente esses pronunciamentos e decisões, porque não tivemos mudanças estruturais.
Essas sempre foram e sempre serão tabus para a igreja católica? Já houve mais abertura, ou pode haver? O que pergunto é se de fato faz diferença a igreja ter um papa mais ou menos progressista com relação às pautas de gênero ou se algumas pautas sempre foram e sempre serão inegociáveis, como o aborto, por exemplo.
Uma mudança estrutural não é simples ou rápida. É uma estrutura milenar que sempre excluiu as mulheres e é dominada por homens, o curto tempo de um papado é insuficiente para alterá-la. Nenhuma outra instituição no mundo está autorizada a excluir pessoas por serem mulheres, mas a Igreja Católica sim. Como disse anteriormente, o Papa Francisco mudou o perfil do papado, nenhuma mudança estrutural veio com ele, a codificação da Igreja Católica continua a mesma.
Mas precisamos reconhecer que o grande legado tenha sido o deslocamento de um discurso que se limita a dizer “o que pode e o que não pode” para um discurso de acolhida e inclusão. O Papa defendia que se deve acolher quem bate à porta, era conciliador e fez gestos importantes para um líder de sua grandeza, mas o caráter conservador da atuação concreta da Igreja Católica, principalmente nas pautas de gênero, continuou sem mudanças significativas.
Como a escolha de um papa mais ou menos progressista influencia politicamente no mundo hoje, para além da vida dos fiéis?
Essa é uma pergunta difícil porque a estrutura patriarcal, colonizadora e racista da Igreja Católica tem uma força para além de quem a lidera. Ao mesmo tempo que, enquanto uma instituição poderosa que é, ter um líder que não seja alinhado à teologia conservadora e nem às pautas da extrema direita, mesmo que parcialmente, é importante.
Foram extremamente importantes os posicionamentos do Papa em relação à crise climática, o genocídio em Gaza, diálogo interreligioso, entre outros assuntos emergentes. Por outro lado, a Igreja Católica está para além do Papa e sua atuação sempre foi de bastidor e continua sendo essa a estratégia de influência política em países que não exercem a laicidade, mesmo que constitucionalmente sejam. No Brasil, a Igreja Católica tem grande atuação nas políticas públicas pela sua capacidade de territorialização e, nos territórios, as estruturas se sobrepõem a qualquer discurso progressista do Papa.
E como esse momento da ascensão da extrema direita influencia a escolha do novo papa?
É difícil dizer. Tivemos uma informação pública que o maior representante da extrema direita global, que é o Trump, tem interesse em intervir no Conclave. Também soubemos de uma visita ao Vaticano do vice-presidente dos EUA no domingo de Páscoa. Este interesse de Trump nos rumos do Vaticano demonstra o quão a Igreja Católica segue sendo poderosa e influente e o quanto a extrema direita quer retomar este poder estratégico.
Não é segredo o quanto grupos conservadores católicos se sentiram contrariados com o papado de Francisco, alguns chegaram ao cúmulo de declarar que não o reconheciam como papa. Obviamente agora veem a chance de retomar a hegemonia do discurso católico com o apoio da autoridade papal. Por outro lado, temos o dado que 80% dos cardeais que escolherão o novo Papa foram nomeados por Francisco, o que pode interferir na escolha de um nome capaz de exercer o diálogo e a acolhida. Mas, na prática, ainda veremos uma hierarquia rica e poderosa negando a capacidade de decisão e liberdade de consciência para mais da metade da população mundial, como a extrema direita faz.
A campanha “Eu confesso” das Católicas propõe uma reflexão sobre as consequências do fundamentalismo religioso sobre a sociedade, ressaltando a importância de separar Estado e Igreja. Pode contar um pouco sobre a campanha?

(Foto: reprodução YouTube)
A ideia da campanha surgiu depois do diálogo com uma ativista de CDD, que havia sido proibida de tocar e cantar na igreja que frequentava, por defender a legalização do aborto. Ela dizia que estava se preparando para se confessar e dizer toda a sua revolta pela Igreja não permitir que ela seja misericordiosa com as mulheres. Ali nos veio a ideia da campanha, a confissão como um ato político. É o momento no qual os integrantes de uma hierarquia, que silencia as mulheres e não as ouve para tomada de decisão, terão que ouvi-las.
Mas também é um momento no qual o padre dá uma penitência, ou seja, dimensiona o tamanho da reparação necessária para o que foi confessado, exercendo novamente um poder sobre aquela mulher. Por isso que a fala final continua sendo da mulher, que ao invés de esperar a penitência diz que vai recorrer à sua liberdade de consciência para questionar essa estrutura patriarcal que julga e silencia as mulheres.
Foi um roteiro elaborado por várias mãos e por quem vive os sacramentos e a fé cristã, mas também é uma campanha para quem não vive a fé católica. Foi um desabafo coletivo de quem vive os impactos negativos da influência da Igreja Católica na garantia dos Direitos Sexuais e Reprodutivos no Brasil.
Como está nesse momento a perseguição ao trabalho de vocês? Isso mudou de alguma forma durante o papado de Francisco?
A maior perseguição que sofremos não foi da própria Igreja Católica, mas de uma organização de pessoas católicas que tentaram impedir o uso do nome da organização. É importante destacar que isso não aconteceu apenas no Brasil, mas em outros países como Argentina e Peru, e não tiveram êxito. Mas também tem uma questão importante que é a nossa existência ser para todas as pessoas.
Não temos como princípio mudar a Igreja, mas defender a laicidade do Estado brasileiro e incentivar às pessoas católicas a viverem sua fé sem abrir mão de seus direitos e liberdade de escolha. Durante o papado de Francisco permanecemos críticas a essa estrutura milenar, sem, contudo, deixar de reconhecer o caráter profético e pastoral da figura de Francisco, assim como celebrar os avanços que foram possíveis por meio dele.
Recebemos muitas mensagens discordantes e agressivas, mas buscamos dialogar com elas, pois existe muita desinformação quando se trata de gênero e Direitos Sexuais e Reprodutivos. Nossa missão é justamente ser um canal de ampliação das consciências a esse respeito e da ideia fundamental que nos move: o feminismo não está em contradição com a fé, pelo contrário, toda a mensagem de Cristo foi pela justiça, o diálogo, a liberdade e a igualdade. Essa continuará sendo a nossa luta.
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