Por Caroline Oliveira — Brasil de Fato
Jadson dos Santos pertence à quarta geração de sua família que nasceu e se criou na Praia do Sono, em Paraty-Mirim, no Rio de Janeiro. Mas, desde meados da década de 1980, todos os seus familiares caiçaras passaram a sair e a entrar na comunidade debaixo de um guarda-chuva de medo e intimidações.
A praia do Sono está localizada numa área próxima ao condomínio Laranjeiras, uma localização de luxo que permite a passagem de turistas e moradores vindos do centro somente mediante autorização.
O mesmo ocorre com as praias da Fazenda, do Sobrado, Ponta Negra, Antigos e outras subjacentes; além da própria praia de Laranjeiras, que compartilha o nome com o condomínio.
“Para atravessar essas praias ou para usufruir desses locais, que é do povo, de domínio público, precisamos de uma autorização do condomínio. Isso é muito ruim, até porque o condomínio está dentro do nosso caminho de ir e vir e atinge principalmente a comunidade do Sono e Ponta Negra”, relata Santos.
O relato de Jadson dos Santos ilustra uma realidade que pode se tornar mais rotineira do que já é caso a PEC das Praias seja aprovada pelo Congresso Nacional.
Embora a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/2022 não faça nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras, ela irá legalizar o bloqueio dos acesso às praias, uma vez que a proposta altera a lei que exige que casas de praia garantam acesso ao mar a cada 100 metros.
Jadson argumenta: “Uma coisa é chegar e ter uma portaria e uma segurança do poder público. Outra coisa é ter um empreendimento que tem a segurança privada. Isso já é uma afronta. É esse processo de intimidação, a sensação de medo de perder as suas coisas, de chegar ali, por exemplo, com as suas compras ou com pessoas doentes e não passar”.
Em 2009, uma ação judicial foi proposta pelo Ministério Público Federal para “assegurar o acesso livre, irrestrito, seguro, permanente e facilmente transitável por qualquer um dos povos às Praias da Fazenda, do Sobrado, Vermelha e Laranjeiras, inclusive pelas vias pavimentadas e internas do Condomínio Laranjeiras, abstendo-se o réu de praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar o acesso da população às referidas praias”. Um acordo entre o MPF e o Condomínio Laranjeiras, porém, foi celebrado apenas em 2016.
No entanto, “apesar de ter tido intuito resolutivo, o problema social não foi solucionado. Além, a população tradicional não recebeu consulta prévia informada. A utilização de kombi por condomínio de elevado padrão econômico para transporte dos caiçaras traduz significativa expressão de violação de direitos fundamentais”, afirmou o procurador Igor Miranda da Silva após o acordo.
Na mesma linha, Santos relata que foram feitas “diversas tentativas de reuniões com os síndicos, os diretores do condomínio, os responsáveis pela segurança. E tudo o que a gente conseguia nas reuniões mais amistosas de negociação e conciliação não valia mais no outro dia”.
Hoje a liderança comunitária afirma que está sendo processado pelo Condomínio Laranjeiras por invasão de propriedade, junto com outros caiçaras, por passarem pelo empreendimento para chegar às suas comunidades. “Eles processam a gente alegando que invadimos uma área privada. Isso é bem grave”, afirma.
Praias privadas no Brasil já são realidade
A secretária-executiva da plataforma PainelMar, Carolina Cardoso, comenta que o cenário atual é semelhante ao de privatização nas praias, ainda que isso não esteja previsto na Constituição Federal.
Não é difícil encontrar um cidadão que tentou acessar alguma região costeira do país e deu de cara com placas com frases como “não entre: propriedade particular”.
Quando o acesso não é totalmente bloqueado, é dificultado de diversas formas: permissão somente mediante autorização de entes privados, intimidação com seguranças e cachorros, existência de trilhas longas para acessar a praia, acesso somente por barco ou limitação de quantidade de pessoas.
Nas palavras de Cardoso, muitos lugares “dificultam a entrada” propositalmente. “Por exemplo, em Angra dos Reis, tem um grande resort na frente de uma praia em que eles falam que o cidadão brasileiro não é proibido de acessar a praia. Só que o acesso da área é super dificultado, tem que fazer uma trilha longa, etc. E as pessoas acabam falando que a praia é particular. O acesso é dificultado por todos os lados e as pessoas não se sentem parte daquele espaço e, muitas vezes, desistem”, relata.
Cardoso afirma que o Condomínio Laranjeiras “é um caso muito clássico, principalmente porque é um caso de injustiça social muito grande em que acabaram comprando os terrenos de caiçaras por valores baixíssimos, tiraram essas populações tradicionais do seu território, construíram esse grande empreendimento e hoje dificultam o acesso das pessoas àquela praia”, afirma.
A região de Angra dos Reis também é bastante conhecida pelas propriedades privadas que dificultam o acesso às praias. O apresentador Luciano Hulk, por exemplo, já foi multado em R$ 40 mil por limitar acesso à praia da Ilha das Palmeiras, onde tem uma casa.
O que diz a legislação?
Atualmente, as praias são áreas públicas sob domínio da União, ou seja, de acesso livre a todos. Também são áreas públicas os terrenos de marinha, que ficam em uma faixa de 33 metros, contados a partir da linha da maré média de 1831 em direção à parte da terra.
Apesar de serem terrenos públicos, entes privados podem adquirir terrenos, caso obedeçam a determinadas regras a depender do tipo de aquisição. Em todas elas, no entanto, há uma norma que permanece: uma passagem a cada 100 metros para garantir à população o livre acesso à praia.
Assim, aqueles que dificultam ou bloqueiam o acesso às praias estão sujeitos a responsabilizações legais. “Todos esses particulares que têm imóveis nos terrenos adjacentes às praias são obrigados por lei a permitir o acesso. A gente pode denunciar para o Ministério Público e exigir o nosso direito de acesso à praia”, afirma Carolina Cardoso.
Os cidadãos que encontrarem dificuldades para acessar praias podem denunciar os casos às seguintes autoridades: Ministério Público e a Secretaria Municipal ou Estadual do Meio Ambiente. Caso a situação envolva danos ambientais, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também pode ser acionado.
PEC das Praias
O relator da PEC das Praias, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), afirmou, após a repercussão negativa sobre a Proposta de Emenda à Constituição 3/2022, que o projeto não irá privatizar praias brasileiras “O espaço público que é a praia vai continuar sendo de todos os brasileiros”, disse o parlamentar em entrevista à GloboNews.
Não há, de fato, nenhuma menção explícita à privatização das praias brasileiras no texto da proposta. No entanto, uma das consequências diretas das mudanças da PEC é justamente a possibilidade de privatizar o acesso às praias. Isso porque abre a possibilidade para que os terrenos de marinha deixem de ser públicos.
Assim, a PEC propõe que não haja nenhuma garantia de acesso às praias, o que pode representar a privatização, principalmente se levado em consideração o cenário atual de privação.
Licio Monteiro, professor de Geografia Política e Geopolítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS/Fiocruz/FCT), afirma que a PEC “reforça os mecanismos de exclusão e de privatização dessas áreas”.
Hoje, “a legislação obriga a garantia do acesso ao ambiente costeiro à praia. Quando deixa de ser terreno de marinha e passa a ser uma propriedade como outra qualquer, não há obrigação nenhuma como a servidão de acesso ao mar”, afirma.
“A questão principal é o acesso. Porque a PEC retira a possibilidade de incidência do poder público na garantia das servidões de acesso a praias nos terrenos que estão adjacentes à costa. Fala-se que não vai se privatizar a faixa de areia, mas a questão é conseguir chegar lá”, diz.
“A lei não está mudando esse limite de 33 metros a partir da linha da maré média. Na verdade, está mudando o que se pode fazer dentro desses 33 metros, onde se pode construir. Hoje, mesmo na área onde se pode construir não se pode fazer o que quiser. Não pode bloquear o acesso”, conclui o professor.
Outro lado
O Brasil de Fato entrou em contato com os responsáveis pela gestão do Condomínio Laranjeiras por WhatsApp e e-mail. Ainda não houve um retorno. Este espaço segue aberto para pronunciamentos.
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