Por Cleber Lourenço
Em entrevista ao ICL Notícias, a deputada federal Duda Salabert (PDT-MG) afirma que dois episódios recentes que atingiram diretamente sua identidade de gênero não podem ser vistos como fatos isolados. Ela se refere à emissão de um visto americano com designação de gênero masculino, desconsiderando seus documentos oficiais brasileiros, e à nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proibiu o uso de bloqueadores hormonais em adolescentes trans.
Segundo Duda, esses acontecimentos são expressões de uma ofensiva coordenada que vem se intensificando mundialmente contra pessoas trans, e que ela chama de “cruzada transnacional antigênero”. “Eles estão conectados. Estão acontecendo aqui no interior do Brasil, nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Hungria… e fazem parte de um movimento global que tem várias fases. Nessa nova fase, decidiram que pessoas trans são o grande inimigo”, declarou a deputada.
Para ela, há uma repetição sistemática de pautas e legislações preconceituosas que circulam entre países e câmaras legislativas, com variações mínimas. Exemplo disso seriam os projetos que vetam pessoas trans em esportes femininos, muitas vezes copiados de iniciativas originadas em parlamentos ultraconservadores estrangeiros.
O episódio do visto americano expôs uma fratura diplomática: o governo dos Estados Unidos se recusou a reconhecer os registros civis da deputada, que oficialmente é identificada como mulher no Brasil. O documento, entretanto, foi emitido com gênero masculino.
Duda denunciou a atitude como transfobia, mas também como violação de soberania nacional. “O Trump pode mudar uma lei americana, mas não pode se recusar a reconhecer um documento jurídico válido no Brasil. Juridicamente no Brasil sou uma mulher. Ao dizer que não, não é só transfobia, é também um problema diplomático”, afirmou.
Ela relembrou que o governo Trump, em seu primeiro mandato, baixou uma ordem executiva que simplesmente declarava que pessoas trans não existem, eliminando políticas públicas de inclusão e direitos. Segundo Duda, isso inaugurou uma onda regressiva que atingiu também artistas e parlamentares trans nos EUA. A deputada americana Sarah McBride, por exemplo, foi forçada a usar banheiros masculinos na Câmara, mesmo com mandato eletivo.
No plano nacional, a resolução do CFM que proíbe bloqueadores hormonais para menores de 18 anos é, na avaliação da parlamentar, um retrocesso grave com efeitos devastadores. “A resolução ignora o que há de melhor de produção científica”, disse.
Segundo ela, ao impedir o acesso regulado a esses tratamentos, a medida empurra adolescentes trans à automedicação e ao uso de hormônios sem acompanhamento médico, prática que historicamente já causou diversos danos à saúde.
“O que vai acontecer agora é o retorno à clandestinidade. Vão comprar anticoncepcionais e outros medicamentos na farmácia, tomar em quantidades absurdas, e com isso estragar fígado, rins, causar uma série de problemas graves. O acompanhamento médico era justamente o que prevenia esses danos”, declarou.
A parlamentar também relatou o aumento no número de contatos recebidos por mães de crianças trans, expressando angústia com a interrupção ou inviabilidade de continuar tratamentos iniciados com respaldo profissional.
“Mesmo que a resolução diga que quem já está em tratamento pode continuar, há medo. E quem tiver que mudar de cidade ou de médico? Como vai dar continuidade ao cuidado? Fora os casos de crianças que estavam prestes a iniciar o bloqueio e agora não poderão mais. Estão desesperadas”, relatou.
Realidade da população trans
Diante da escalada dos retrocessos, Duda Salabert tem articulado reações em várias frentes. Na esfera legislativa, enviou ofício ao CFM solicitando reunião formal. No campo jurídico, colaborou com a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e com o IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) na elaboração de uma ação protocolada no Supremo Tribunal Federal. E há outras medidas em andamento. “Por enquanto, não posso dar muitos spoilers, mas vem aí cenas do próximo capítulo”, afirmou.
Em paralelo, Duda busca também resposta diplomática ao caso do visto. Está em diálogo com o Itamaraty e com organizações internacionais de direitos LGBTQIA+, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, para discutir possibilidades de resposta formal ao governo americano, incluindo eventual ação judicial.
“A mensagem que passa com essas ações é de que há algo errado com pessoas trans, que seriam doentes, que talvez não mereçam existir. Isso fere o mais profundo dessas pessoas, especialmente jovens. Pode causar depressão, abalar a autoestima e até estimular o suicídio. Essa é uma geração que cresceu acreditando que finalmente poderia existir em plenitude, com direito a viver”, disse.
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