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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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O português, esta língua em disputas (de) coloniais

Dia mundial da língua portuguesa
02/05/2024 | 07h00

Considerando que o presidente de Portugal recentemente, em uma fala histórica, finalmente abordou as culpas do país em relação a tantos males advindos da colonização, vamos a algumas reflexões há poucos dias do 5 de maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa.

Caravelas

Alguém orgulhoso em Portugal poderia dizer que caravelas são o símbolo do arrojo, do desprendimento e do espírito desbravador de seu povo.

Não estaria de todo errado, pois quando embarcavam naquelas naves gigantes e jogavam aquela montanha de madeira encimada por mastros e panos no oceano imenso, estavam entrando no avião da época… mas sem saber ao certo quando encontrariam o aeroporto e em que condições.

Era a alta tecnologia de um tempo da humanidade a serviço das ambições por poder político, econômico e desejos expansionistas de uma nação.

Alguém orgulhoso no Brasil ou em outras nações colonizadas pelos destemidos do segundo parágrafo deste texto, poderia dizer que caravelas são o símbolo do inacreditável poder de resistência do seu povo.

Não estaria nada errado, pois quando desembarcavam daquelas canoas enormes, cheios de fome e portando os males do grande tempo em alto mar, muitos dos destemidos acima traziam consigo o objetivo invasor, dilapidador de terras e recursos, escravizador, torturador e matador de quem atravessasse seu caminho. Resistir a isto só foi possível por conta da alta tecnologia de sobrevivência acumulada em muitos tempos da humanidade, a serviço do desejo pela vida de membros de muitas nações.

Uma caravela, muitas interpretações. Uma caravela e um idioma: o português.

Passados os seis séculos desde o distante 1444 do primeiro leilão de escravizados no Algarve, e da longínqua 1500 da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, este idioma, que foi imposto literalmente goela abaixo de milhões de pessoas é hoje o código com o qual se comunicam oficialmente outros milhões de seres humanos, numa geopolítica construída em cima de feridas não tratadas em toda parte.

Não espanta notar que ela, a língua portuguesa, seja a principal e mais difícil caravela do século 21. Também não é surpreendente que o país que a originou se ressinta das mudanças e atravessamentos que são naturais, visto que a língua é algo vivo, transformado pelo tempo, pelos falantes que habitam este tempo e seus pertencimentos históricos e culturais.

Não há como impor um idioma a um grupo, sem que ele seja definitivamente transformado. Sendo assim, o português hoje é de muita gente ao redor do planeta. Tem a contribuição de uma multidão histórica e, lembremos de Lélia Gonzales, pois o “pretuguês” é uma realidade.

Barco fantasma

Enquanto até Portugal já está no duro exercício de entendimento das nódoas do passado, é extremamente espantosa — para dizer o mínimo — a reunião que o Consulado do Brasil em Nova Iorque realizou no último dia 26 de abril intitulado “Conexão Português e Literatura Brasileira”, com professores universitários, autores, tradutores e editores de literatura brasileira. Todos brancos, todos e todas. Zero profissionais negros ou indígenas. Ninguém. Silêncio de fala. Silêncio.

Não fosse o Consulado do Brasil, este país mais da metade negro segundo o censo, seria igualmente escandaloso, mas sendo uma representação brasileira é inacreditável, pois na região de jurisdição do consultado nova iorquino, existe um abundante número de brasileiras e brasileiros negros lecionando português e literatura nas maiores universidades e escolas, mas, qual habitantes de um barco fantasma, não foram vistos.

Tanta desconexão histórica nos faz navegar pelos espaços virtuais e, olhando com um pouco mais atenção, o passado grita. O programa promovido pelo consulado BRASILEIRO para prática do português pela internet tem como símbolo — vejam que curioso — uma caravela! Nele fala-se em herança, mas não em antirracismo linguístico para combater uma “herança” que segue fazendo estragos ainda hoje no Brasil, em Portugal, nos Estados Unidos…

O idioma é onde se assenta a história e a cultura. É a barca oral ou escrita que carrega pelo tempo quem somos no presente e quem queremos ser no futuro. Não estando atenta para isto, definitivamente nossa diplomacia prova que não é feita dos que estavam na praia e muito menos dos que habitavam os porões destas impressionantes e terríveis embarcações que, pelo visto, continuam a singrar os mares do proposital esquecimento.

Este texto é uma provocação para quem deseja de fato mudar a direção dos ventos e reposicionar as velas. Cabem todos e todas na embarcação da inclusão. Há tempo para uma nova história falada em português. Sempre há.

 

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