Por Gustavo Cabral *
Quando se aborda o Sistema Único de Saúde (SUS), é comum que surjam interpretações que o associem a uma defesa política partidária. No entanto, essa visão é equivocada e limitada, pois negligência as necessidades sociais dos segmentos mais vulneráveis da população que dependem do suporte público.
Em conversas, é comum encontrar questionamentos sobre o apoio fervoroso ao SUS por parte de pessoas que, supostamente, não dependem dos seus serviços de saúde devido a recursos financeiros próprios.
Esses questionamentos frequentemente questionam a qualidade dos serviços prestados pelo SUS e sugerem que aqueles que defendem o sistema, especialmente os considerados de esquerda, parecem aceitar a precariedade como um status quo, em prol da manutenção do poder político.
Contudo, além dessas visões simplistas, é importante refletir sobre porque o SUS é considerado tão essencial e por que é defendido com tanto empenho.
Será que a crítica seria a melhor abordagem para promover melhorias? Ou seria mais benéfico privatizar o sistema, confiando na gestão privada para elevar a qualidade dos serviços prestados, enquanto se reserva cotas de atendimento para os mais necessitados?
Essas questões podem parecer logicamente fundamentadas à primeira vista, porém, ao analisá-las mais profundamente, percebe-se que sua lógica prática é limitada.
Após o fim da Ditadura Militar em 1985, o Brasil adotou uma postura mais voltada para a garantia de direitos e liberdades individuais em sua nova Constituição, bem como um enfoque no desenvolvimento social. “O direito à saúde foi consagrado como um direito universal e responsabilidade do Estado, assegurado por políticas socioeconômicas que visam a redução dos riscos de doenças e o acesso equitativo e universal a serviços de saúde”.
O SUS, concebido nesse contexto de redemocratização e movimentos sociais, foi oficialmente criado em 1988 pela Constituição Brasileira. Desde então, tem havido um notável crescimento e expansão do SUS, em busca da cobertura universal de saúde.
Dito isso, gosto de falar que provenho de uma origem humilde e não sou “burro”, dessa forma tenho uma perspectiva valiosa sobre a importância da acessibilidade. Além disso, como cientista, tenho um profundo apreço pela análise de dados e pela fundamentação em referências sólidas.
Portanto, defendo a acessibilidade com base em evidências concretas, sejam elas científicas, ou aquelas empíricas que obtive em minha história de vida. Dessa forma, gostaria de citar alguns dos grandes feitos do SUS, além de falar de passos fundamentais que precisamos dar, para evoluirmos.
Certamente, o SUS desempenhou um papel crucial no enfrentamento da pandemia de Covid-19 em diversas frentes. Desde a triagem e diagnóstico da população até a ampliação significativa dos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e o processo de vacinação em massa, o sistema se destacou.
Além disso, o SUS possibilitou a aquisição de equipamentos hospitalares, a contratação e realocação de profissionais de saúde e a prestação de orientação social, entre outras medidas.
É inegável que, sem o SUS, estaríamos enfrentando uma situação muito mais grave, talvez equiparável aos períodos mais sombrios da história, como a Idade Média. Vale ressaltar que, mesmo diante de desafios como Ministros da Saúde controversos e lideranças políticas inadequadas, o SUS conseguiu salvar inúmeras vidas.
Além do enfrentamento da pandemia de Covid-19, é importante mencionar outra batalha que já dura mais de 40 anos: a luta contra o HIV/AIDS. Graças ao SUS, o Brasil é reconhecido internacionalmente, inclusive pela ONU, como uma referência no controle dessa doença. O acesso ao tratamento antirretroviral, à testagem, aos preservativos e ao gel lubrificante é possibilitado pelo SUS.
De acordo com um relatório divulgado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, o Brasil alcançou uma das três metas recomendadas para combater a epidemia de Aids até 2030.
O estudo revela que 88% das pessoas vivendo com HIV têm o diagnóstico, 83% estão em tratamento antirretroviral e, desses, 95% têm a carga viral suprimida. A ONU sugere que todos esses indicadores alcancem os 95%, demonstrando o impacto significativo do SUS nessa área crucial da saúde pública.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI), sob responsabilidade do Ministério da Saúde, é motivo de orgulho e reconhecimento para o SUS, graças ao seu histórico de excelência. Apesar dos desafios impostos pelo movimento negacionista em relação às vacinas, o Brasil, por meio desse programa, disponibiliza gratuitamente no SUS 48 imunobiológicos, sendo 31 vacinas, 13 soros e 4 imunoglobulinas.
Essas vacinas desempenham um papel fundamental na prevenção de doenças graves como poliomielite, sarampo, rubéola, tétano, coqueluche, febre amarela, Covid-19 e outras patologias que frequentemente têm desfechos fatais. Essa ampla oferta de imunização reflete o compromisso do SUS em garantir a saúde e o bem-estar da população brasileira.
Além das doenças infecciosas, é crucial abordar as doenças crônicas, como o câncer, que representam uma ameaça significativa à saúde global. Em todo o Brasil, cada estado conta com pelo menos um hospital especializado em oncologia, oferecendo desde exames diagnósticos até cirurgias complexas para pacientes com câncer.
Embora essa área ainda esteja em desenvolvimento e exija atenção contínua, é inegável que o serviço público de saúde desempenha um papel vital, especialmente para as comunidades mais vulneráveis, que poderiam estar sofrendo e morrendo sem acesso a diagnóstico e tratamento adequados para o câncer e outras doenças crônicas fatais.
O SUS também se destaca globalmente por possuir a maior estrutura de transplantes do mundo, cobrindo quase 90% de todas as cirurgias desse tipo realizadas no país, conforme relatado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO).
O Sistema Nacional de Transplantes (SNT), do Ministério da Saúde, desempenha um papel fundamental na regulamentação, controle e monitoramento do processo de doação e transplantes realizados no Brasil. Apesar de exercer um papel de excelência, o SNT busca constantemente aprimorar os processos de doação, captação e distribuição de órgãos, tecidos e células-tronco hematopoéticas para fins terapêuticos, garantindo assim o acesso equitativo e eficaz a tratamentos salvadores de vidas para aqueles que necessitam.
No entanto, é importante reconhecer que, apesar dos avanços, ainda enfrentamos desafios significativos. A pandemia de Covid-19 destacou a urgente necessidade de investir em pesquisa e desenvolvimento para reduzir nossa dependência de importação de insumos farmacêuticos ativos, os IFAs, pois além do menor acesso aos insumos em momento de urgências globais, a dependência desses IFAs afeta diretamente nossa balança comercial.
Além disso, para aprimorar o SUS, são necessárias várias medidas. Por exemplo, é fundamental implementar um plano abrangente para garantir o acesso equitativo aos serviços de saúde, especialmente em áreas rurais e regiões com alta taxa de pobreza. Isso exigirá investimentos significativos em infraestrutura de saúde e capacitação de profissionais da área médica, visando melhorar a qualidade do atendimento no SUS.
É essencial reduzir os tempos de espera, alocar adequadamente os profissionais de saúde conforme a demanda e garantir que tenham acesso aos recursos necessários para fornecer um atendimento de qualidade. O SUS precisa ser continuamente reestruturado para melhorar a atenção em todos os níveis de cuidado, desde a atenção primária até a especializada.
Entretanto, transferir a responsabilidade pelo acesso universal à saúde para o setor privado não resolverá os problemas do SUS. A verdadeira solução está em garantir que o poder público seja cada vez mais profissional e sensível às necessidades da população, honrando a conquista social que é o SUS. Sabemos que conquistar e manter uma joia como o SUS demandou muita luta, e devemos continuar defendendo e aprimorando esse patrimônio nacional.
*Imunologista PhD e Coordenador de Pesquisa no ICB-IV da USP, para o desenvolvimento tecnológico de vacinas aplicadas contra Covid-19, Chikungunya, Zika e Dengue vírus.
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