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Jorge Mizael

Cientista político, doutorando pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), com foco em comportamento político e estudos sobre mudanças constitucionais. Fundador da Metapolítica, consultoria premiada no Oscar da Comunicação Política Mundial em 2020 pela The Washington Academy of Political Arts Sciences. Indicado, em 2021, como Consultor Político Revelação pela mesma instituição. Colunista do portal ICL Notícias, onde analisa questões políticas e institucionais com ênfase em governança e a relação entre o Legislativo e o Executivo.

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Proteção ao servidor público: por que o PL 3957/2024 não avança na Câmara?

Estagnação do projeto revela falta de prioridade do Legislativo e resistência em fortalecer garantias ao funcionalismo
27/02/2025 | 04h49

O caso Cancellier e a urgência da proteção aos servidores

O Projeto de Lei (PL) 3957/2024, apresentado pela Deputada Carla Ayres (PT/SC) na Câmara dos Deputados, nasceu de uma tragédia que expôs as fragilidades do sistema de proteção aos servidores públicos: a história do ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier. Quatro meses após sua apresentação, no entanto, a proposta segue engavetada, sem qualquer movimentação ou perspectiva de avanço.

Em 2017, seguindo o modus operandi da operação Lava Jato, Cancellier foi preso preventivamente por 36 horas sob acusações de desvio de recursos públicos na Operação Ouvidos Moucos — acusações que jamais foram comprovadas. Afastado da universidade, onde exercia o cargo de reitor, ele foi submetido a um linchamento público e institucional que culminou em seu suicídio. Somente anos depois, o Tribunal de Contas da União (TCU) arquivou o caso, reconhecendo implicitamente os excessos cometidos. O episódio chocou o país e reforçou a necessidade de mecanismos legais que impeçam que tragédias semelhantes se repitam.

É nesse contexto que o PL 3957/2024 propõe regras para coibir abusos administrativos e proteger servidores contra perseguições e arbitrariedades. No entanto, sua estagnação na Câmara dos Deputados revela muito sobre as prioridades do Legislativo e o desinteresse em fortalecer garantias institucionais.

O que propõe o PL 3957/2024?

O projeto parte de uma premissa simples: servidores públicos não podem ser alvo de perseguições disfarçadas de processos administrativos. Para isso, a proposta estabelece mecanismos para garantir mais transparência, justiça e equilíbrio na condução desses procedimentos.

Entre as principais mudanças, destacam-se:

  • Limite de dois processos simultâneos por servidor: uma barreira contra a prática comum de abrir múltiplos procedimentos disciplinares como forma de assédio institucional. Isso impede que servidores fiquem reféns de investigações intermináveis e desgastantes.
  • Criação da Comissão de Avaliação de Processos: um órgão composto por representantes da corregedoria, da controladoria e dos servidores, responsável por revisar previamente a abertura de novos processos disciplinares. O objetivo é garantir que casos devidamente justificados sejam instaurados.
  • Supervisão externa: um mecanismo independente para acompanhar a condução dos processos administrativos, coibindo abusos e promovendo maior transparência.
  • Proteção contra denúncias infundadas e assédio moral: o projeto estabelece punições para autoridades que abusam do poder disciplinar, além de assegurar o direito de defesa dos servidores.
  • Divulgação obrigatória de absolvições: muitas vezes, quando um servidor é acusado injustamente, o estrago à sua reputação já está feito. O PL determina que absolvições e arquivamentos tenham a mesma visibilidade que as acusações, garantindo a preservação da imagem do servidor.
  • Indenização por danos: servidores que forem vítimas de perseguição institucional ou processos abusivos teriam direito à reparação financeira, reconhecendo os prejuízos pessoais e profissionais decorrentes dessas práticas.

O PL 3957/2024 propõe um mínimo de segurança jurídica para evitar que o serviço público seja palco de perseguições políticas e institucionais.

Por que o projeto não anda na Câmara?

Apesar de sua importância, o PL 3957/2024 está parado na Câmara há quatro meses. Essa demora não é casual. Há uma resistência histórica a pautas que fortaleçam a proteção dos servidores públicos, muitas vezes retratados como uma categoria “privilegiada” para justificar o enfraquecimento de seus direitos.

A falta de mobilização também pesa. Projetos sem grande pressão popular ou institucional costumam ser deixados de lado, enquanto outras propostas com maior apelo político avançam rapidamente. Além disso, há um receio de que endurecer as regras contra abusos administrativos enfraqueça certos setores que se beneficiam da atual falta de controle sobre processos disciplinares.

Outro fator é a narrativa dominante sobre o funcionalismo público. Durante anos, a ideia de que o setor público é ineficiente e precisa de cortes ganhou força no debate político. Esse discurso, além de alimentar reformas que reduzem direitos, acaba servindo de pretexto para barrar qualquer iniciativa que aumente garantias aos servidores.

O que pode ser feito para destravar o PL 3957/2024?

Se há resistência política, a solução passa pela pressão institucional e popular. Algumas estratégias podem acelerar a tramitação do projeto:

  • Requerimento de Urgência: deputados alinhados à pauta dos servidores podem apresentar um pedido para que o PL seja votado com prioridade.
  • Atuação das Frentes Parlamentares: associações de parlamentares como as Frentes Parlamentares pró Serviço Público podem pressionar a liderança e o presidente da Câmara a pautar o projeto.
  • Mobilização de sindicatos e associações: entidades representativas dos servidores podem organizar campanhas, audiências públicas e reuniões com parlamentares para aumentar a visibilidade do tema.
  • Pressão da sociedade civil: o apoio de cidadãos e a utilização de redes sociais para ampliar o debate são fundamentais para evitar que o PL continue esquecido.

O Legislativo deve uma resposta

A paralisação do PL 3957/2024 não é um caso isolado. Reflete um problema maior: a negligência do Congresso em relação ao serviço público. Enquanto há pressa para aprovar pautas que flexibilizam direitos e reduzem garantias, propostas que buscam proteger trabalhadores do setor público são deixadas de lado.

O caso Cancellier não pode ser somente um episódio trágico na história brasileira. Ele deve servir de alerta para a urgência de reformular os mecanismos de proteção aos servidores, garantindo que ninguém mais seja destruído por processos arbitrários.

O Congresso tem duas opções: continuar ignorando a questão e deixar que novos casos de abuso se acumulem, ou assumir sua responsabilidade e garantir que o serviço público seja um ambiente mais justo e previsível. A escolha está nas mãos dos parlamentares, mas a cobrança precisa partir de toda a sociedade.

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