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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Quando a história cai sobre nossas cabeças

Teto tombado na Bahia fala sobre nós
06/02/2025 | 05h30

O Brasil precisa responder a uma pergunta: quando vai deixar de escrever crônicas das mortes anunciadas? O falecimento da visitante sob os escombros do teto da igreja de São Francisco de Assis, joia imponentemente encravada no Terreiro de Jesus há 400 anos, é apenas mais uma delas.

Além da vida de uma jovem de 26 anos, o incidente também demonstra um assassinato intencional, um abandono da história… e não estamos falando apenas deste templo na Bahia, mas de um país que não enxerga importância em seus vestígios do passado.

“Famosa ‘igreja de ouro’ do Centro Histórico de Salvador tem pilar sem reboco, piso desnivelado, pintura desgastada e teto escorado”.

“Igreja de São Francisco é uma das principais do Centro Histórico de Salvador e passará por restauração, porque há risco do pináculo direito desabar”.

“Igreja histórica no centro de Salvador tem teto escorado e pilar sem reboco”

“Tombada como patrimônio material do Brasil, a igreja de São Francisco de Assis vem enfrentando uma série de problemas estruturais”.

Os textos acima foram retirados de notícias da grande mídia, entre julho e agosto de 2023, e eles avisavam que a morte estava suspensa em um teto escorado, em um pináculo (cume, torre) prestes a esmagar pedestres e uma estrutura com grandes possibilidades de ruir. Curioso que quase todas as matérias ressaltam os prejuízos aos comerciantes e ao movimento turístico com interdições. Falam das possíveis vidas ameaçadas, mas de forma secundária. O valor para a história então…

Não é sobre religião, mas sobre o legado deixado pelo engenho da arte de gênios da escultura, pintura e arquitetura, mas também sobre o suor de milhares de pessoas que gastaram vidas para revestir de outro aquele templo testemunha de um tempo que não pode voltar. Um pensamento capaz de gastar aquela quantidade de riqueza para dizer a Deus do seu poder, sem levar em conta os que oprimiam para construí-lo.

Nunca esqueci a minha primeira vez nesta igreja, ainda criança, conduzida pelo meu pai, que viveu a infância e a juventude percorrendo aquelas ruas de um Pelourinho marginal, de uma população relegada ao esquecimento em contraste com todo aquele dourado que me assombrou por conta das toneladas de história em cada pequeno detalhe entalhado.

Não à toa o lugar é considerado uma das sete maravilhas de origem portuguesa no mundo, mas se um ícone da pujança do sistema colonial está em ruínas, o que dirá dos símbolos dos que foram esmagados por ele. A memória não importa para um país que anseia por viver recomeçando, pois a amnésia é o nosso entorpecente e a nossa maior ruína.

Quando a catedral francesa de Notre Dame foi comida pelo fogo, milionários de todo o globo se apressaram em auxiliar na reconstrução daquele patrimônio humano. Inclusive endinheirados brasileiros que abriram seus cofres para a igreja europeia, mas não foram capazes de coçar o bolso com quantias nem próximas para reerguer, por exemplo, o Museu Nacional. Fica aqui a reflexão, pois tudo isso fala sobre nós.

Pêsames à família da jovem Giulia Panchoni Righetto, que perdeu a vida embaixo do ouro e do descaso com o que precisa ser lembrado.

 

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