Bernardo Cotrim*
Lançado em 9 de abril de 1994, “Da lama ao caos”, disco de estreia de Chico Science & Nação Zumbi, é uma porrada no pé do ouvido que, três décadas depois, insiste em ecoar atualíssima.
Gravado e produzido no mítico estúdio Nas Nuvens, de Gilberto Gil e Liminha, onde pérolas dos anos 80 como “Cabeça dinossauro”, dos Titãs, e “Selvagem”, dos Paralamas do Sucesso, foram gravadas, o álbum já nasceu clássico. Na capa, o caranguejo, habitante do mangue e bicho-símbolo do movimento, surge em colagem colorida e quase abstrata, como se formando a partir de uma interferência na antena de TV.
Dois anos antes, Fred Zero-Quatro, da banda coirmã Mundo Livre S/A, dava o bizu no manifesto “Caranguejos com cérebro”, pedra angular do mais importante movimento dos anos 90:
“(…) começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.”
O recado era explícito: a juventude de Recife (e da região metropolitana) fincava um pé na tradição, nas raízes culturais, e ligava a antena para captar uma infinidade de referências — do cinema à dança, da música aos quadrinhos, transmitindo do mangue para o mundo a síntese inrotulável que tem em “Da lama ao caos” a sua obra-prima.
O caldeirão sonoro formado pelo encontro entre os riffs de Lúcio Maia, o mais criativo guitarrista brasileiro desde Edgard Scandurra, e a combinação pesadíssima das alfaias com o baixo de Dengue formava a cama para o vocal entre o hip-hop e o repente e a presença hipnótica de Chico Science, chapéu-coco, roupa e óculos coloridos, caboclo de lança moderno a emular um caranguejo no palco.
As letras eram um espetáculo à parte: durante todo o disco, desfilam lendas urbanas como a “perna cabeluda”, referências ao cangaço e à ficção científica, sempre tendo Recife como “cenário”. As dinâmicas da cidade refletem as contradições do capitalismo: a violência, a desigualdade social, o desalento, mas também a luta pela sobrevivência e o desejo de transformação da realidade.
O disco arrebatou uma parcela imensa da juventude dos anos 90. Impulsionado pelo frenesi causado pelos explosivos shows da banda e pelos bem sucedidos clipes na MTV, o manguebeat deslocou o centro da música pop brasileira para o nordeste.
Trinta anos depois da Tropicália, Pernambuco dava à luz um movimento de afinidades explícitas. Na esteira de Chico Science & Nação Zumbi, outras bandas como Mundo Livre S/A, banda Eddie, Comadre Fulôzinha e Mestre Ambrósio ganharam holofotes e fortaleceram o cenário artístico.
Ao longo do tempo, a influência do disco só aumentou: “Da lama ao caos” foi reverenciado em listas de discos mais importantes (13º lugar na lista de cem maiores discos da MPB na revista Rolling Stone, e considerado o disco mais importante dos últimos 40 anos pelo jornal O Globo). Também foi sampleado e citado por outros músicos, analisado em uma infinidade de trabalhos acadêmicos e, principalmente, no genial livro da jornalista Lorena Calábria para a coleção “O livro do disco”, que reconstrói de forma brilhante as trajetórias, os encontros, as histórias e a conjuntura que possibilitou o nascimento da obra. Como alguém que teve a sorte de viver intensamente a explosão do manguebeat, nos anos 90, afirmo: nada mais justo.
*Bernardo Cotrim é jornalista e gerente de mídias do ICL
Deixe um comentário