Que coisa extraordinária. Que coisa absolutamente extraordinária. Uma multidão entusiasmada celebra o dia nacional aplaudindo um empresário americano e execrando um juiz que é seu compatriota. No dia da independência do Brasil os celebrantes usam cartazes em inglês e os oradores frases em inglês. Tudo para agradar ao seu novo herói americano. Desculpem, mas que espécie de patriotismo é aquele? Que pátria celebram — a do juiz ou a do empresário?
O empresário. É preciso ser uma besta quadrada para desafiar desta forma a soberania brasileira. A penosa história do Brasil do século vinte está repleta de ilegítimas intervenções do governo dos Estados Unidos da América na sua soberania, mas, desta vez, não é sequer o governo americano, mas um bilionário americano. Um megalômano. Um ativista político disfarçado de empresário que espreita a oportunidade de liderar a extrema direita brasileira na sua batalha pela liberdade de insultar os outros e desrespeitar os princípios básicos de civilidade democrática. E, no entanto, bem vistas as coisas, o episódio resultou numa première: finalmente, um Estado de economia de mercado fechou uma rede social. Assim se construiu uma proeza brasileira cujo significado politico ainda não foi inteiramente percebido no plano internacional (a suspensão do TikTok nos Estados Unidos não foi fundamentada no incumprimento da lei, mas em razões de segurança nacional).
A multidão. O mais difícil de explicar não é o comportamento do empresário americano, mas a atitude daqueles que no Brasil o apoiam. Que espetáculo grotesco. A multidão aplaude o bilionário americano e maldiz o juiz brasileiro. Entre o poder da lei e a lei do dinheiro a extrema direita brasileira faz a sua escolha nas ruas berrando impropérios contra o Tribunal Supremo do País. Liberdade? Mas nada nesta história tem a ver com liberdade, só com poder. A cegueira política só encontra explicação no ódio. Um ódio existencial ao adversário político que impede qualquer diálogo democrático.
A soberba do bilionário é fácil de compreender. Ela é filha da maluquice neoliberal dos últimos anos que entende que o Estado deve servir o mercado, não regulá-lo. Já não se trata do liberalismo clássico do laisser faire, isto de demarcar uma zona de racionalidade econômica que deve ser deixada aos mecanismos de mercado e uma outra de racionalidade política, de interesse geral, que deve ser deixada ao Estado. Não. Para a nova utopia neoliberal é a economia que funda a política, não a política que define as regras da economia. A arrogância do empresário compreende-se assim: o juiz devia pôr a lei ao serviço dos seus interesses, não ao serviço do interesse geral.
Quanto à extrema direita, ela não aprende nem esquece: ela imita. Imita de forma quase perfeita o que vê acontecer nos Estados Unidos — “as eleições foram conduzidas de forma parcial”; os “patriotas e inocentes do 8 de janeiro devem ser anistiados”; o juiz é “psicopata” e deve sofrer um “processo de impeachment”. Eis o seu programa político. Um pouco mais e reclamavam que a última eleição foi roubada. Não, eles nunca perderam uma eleição. Como poderiam, aliás? Como poderiam perder se são eles que representam o povo, o povo autêntico e virtuoso? Os outros? Os outros não são do povo, são um não-povo envenenado por ideologias estranhas à tradição popular. Enfim: o Brasil acima de tudo, Elon Musk acima de todos.
Não tenho especial simpatia pela atuação do juiz Alexandre de Moraes. Pelo contrário, sou dos que veem sérios problemas para o Estado de direito democrático quando o mesmo juiz abre um processo, investiga o processo e julga esse processo. Incluo-me entre aqueles que pensam que uma das mais nefastas doenças brasileiras é a judicialização da política. Não gosto de ver juízes tutelarem escolhas políticas e detesto profundamente o paternalismo corporativo das classes que se julgam acima das escolhas democráticas, como é agora o caso dos juízes e antes foi o dos militares. Todavia, isto dito, o que é absolutamente repulsivo nesta disputa entre o juiz e o bilionário americano é o desrespeito deste último pela dignidade nacional do Brasil. É isto que está em causa. Nesta disputa o juiz é mais do que ele próprio. Pela minha parte, como para todos aqueles que prezam a dignidade dos povos, tenho gosto em estar do seu lado.
Deixe um comentário