George Orwell, autor do livro “1984”, um dos maiores best sellers da humanidade e onde aparece o personagem “Big Brother”, que hoje nomeia realities shows pelo mundo, tem uma frase lapidar atribuída a ele: “A história é escrita pelos vencedores”. Uma forma muito elegante de dizer que quem vence muito frequentemente conta a sua versão dos fatos inflando sucessos, escondendo fracassos e adocicando grandes crimes com o nome de “heroísmo”, “ousadia”, “destemor”, “amor à pátria”, etc.
George sabia (e nós também) que o talento para narrar é quase tudo na história da humanidade e que a voz que domina é a que impõe a sua verdade goela abaixo das gerações futuras. Ele estava a nos dizer, principalmente, que tudo é texto e que ele muda conforme quem está no topo. Será? Modestamente acho que em parte sim e em parte não.
Todo último trimestre de ano é o momento dos grandes prêmios revelarem os nomes que mereceram louvor nas produções do período anterior no campo literário, áudio visual, teatral, enfim, em diversas formas de arte mundo afora e é curioso observar este movimento como algo revelador da própria visão que a humanidade tem de si mesma, para onde estão guiados os olhares e onde estão acontecendo as “guerras pela voz mais alta”.
Escrevo este texto aqui como dizem os jovens “direto da gringa”, onde tive a chance de participar da festa do Prêmio Emmy Internacional, pois fiz parte do time de roteiristas da minissérie brasileira “Anderson Spider Silva”, nomeada para a estatueta. Para mim, um novo ângulo de observação deste mesmo fenômeno chamado “quem conta a história”. São muitos os subtextos, mas o principal diz sobre dinheiro.
O capital vai buscar cooptar todo e qualquer discurso embutido nestas manifestações artísticas e que fale a muitos corações e mentes. Só existe um jeito de escapar disto: não fingir que este fato não existe. Consciência de quais processos são “softwares” que fazem rodar os programas destas indústrias faz toda a diferença porque permite a cada um e cada uma saber o que faz e o que não faz o menor sentido para si.
No Brasil, o sucesso do filme “Ainda estou aqui” fez pensar sobre o período do golpe militar sofrido pelo país há exatos 60 anos, sobre as várias versões para um desaparecimento, depois uma morte e em seguida sobre o paradeiro de um corpo — o do ex-deputado Rubens Paiva —, mas tudo isso por intermédio do drama real de uma família que atravessou este tempo brigando para manter-se íntegra e digna apesar das sucessivas pancadas para que se estilhaçasse. Atuações magistrais de Fernanda Torres como Eunice Paiva, Selton Melo como Rubens e grande elenco. Nada fora do lugar para quem se emocionou sentado na sala escura. Tudo errado para quem nem quis ver, pois ainda está pactuado com outras versões da história contada pelos vencedores.
Foi a ditadura civil-militar, mas poderia ser alguma história que questionasse o período da escravidão negra e suas sequelas nefastas, ou o massacre indígena, ou um número infinito de pontos de vista quantas são as possibilidades de conflitos e dramas humanos. A voz “vitoriosa” é a que sempre dita o que dói mais, qual morte é mais chorada, qual riso é mais engraçado, qual corpo é mais bonito, qual imagem é mais terna, aterradora, repugnante… certo? Errado.
Para continuar no exemplo do filme, ele está mergulhadíssimo na milionária indústria cinematográfica mundial, mas todos os envolvidos parecem totalmente conscientes da história que estão contando e de como estas engrenagens podem amplificar outra versão dos fatos infinitamente mais próxima do que realmente aconteceu. Por isso acredito que George Orwell tinha apenas parte da razão, pois a história caminha com a vida e a definição do que seja um vencedor também navega com ela.
O Brasil vive um capítulo inédito e com pitadas grandes de surrealismo. Um grupo político passou anos adubando com ódio uma camada da população; venceu um pleito, agiu como se tivesse comprado o país de “porteira fechada” e então perdeu a eleição seguinte. Aí tramou um golpe aguardado ansiosamente pela plantação de odiadores cultivada por eles há décadas. Foram descobertos, muitos foram presos e começa um tiroteio de versões para livrar de culpa àqueles que foram inequivocamente e confessadamente os arquitetos de um golpe de Estado… frustrado, mas ainda assim um atentado à segurança da democracia e, cá entre nós, às inteligências.
Um dia estes fatos ganharão as páginas, as telas, o imaginário… O que dirão os artistas do futuro (caso ele, o futuro, aconteça) sobre este presente alucinógeno? Quem serão as pessoas que contarão esta história quando não estivermos mais por aqui?
Querido Orwell, a arte verdadeira é sempre insubmissa e não aceita um ponto final. Então vai depender de quem vencer hoje… ou não.
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