Por Igor Mello
A decisão do corregedor-nacional de Justiça, o ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Luis Felipe Salomão, de afastar os juízes federais Gabriela Hardt e Danilo Pereira Júnior, ambos com passagens na 13ª Vara Federal do Paraná, e dois desembargadores do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) reabriu a disputa sobre o legado da Operação Lava Jato.
Investigação da Polícia Federal mostra que a Lava Jato agiu de maneira ilegal para direcionar recursos oriundos de multas e acordos de colaboração para que a Petrobras pagasse multas nos Estados Unidos, visando que parte desses valores voltassem para uma fundação privada idealizada e comandada por integrantes da força-tarefa. Em sua decisão, Salomão comparou a manobra a um “cashback”.
Setores do Judiciário e do Ministério Público saíram em defesa dos integrantes da Lava Jato, incluindo os hoje políticos Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, tendo como representante mais destacado o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luis Roberto Barroso, presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Por ação de Barroso, o CNJ revogou o afastamento de Hardt — substituta de Sérgio Moro nos processos da Lava Jato — e Pereira Júnior, atual titular da 13ª Vara Federal por 8 votos a 7.
O pesquisador Rafael Viegas, doutor em Administração Pública e Governo, e professor da FGV-SP, é um dos maiores especialistas no país no funcionamento dos órgãos de controle das carreiras jurídicas — o CNJ e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Para ele, a disputa joga luz sobre como o corporativismo blinda juízes e promotores de punições que cometem ilegalidades.
Quem saiu vitorioso nessa queda de braço entre os ministros Salomão e Barroso?
O poder de agenda do ministro Barroso, presidente do CNJ, foi colocado em xeque pela iniciativa do ministro Salomão de adotar medidas duras, com o afastamento de juízes e desembargadores que atuaram na Lava Jato.
Ele conseguiu pautar o CNJ e o debate público sobre a dificuldade de responsabilizar membros da magistratura e do MP que cometem ilícitos. É uma vitória dele nesse sentido.
O avanço da investigação do CNJ pode levar integrantes da Lava Jato a condenações criminais?
A Lava Jato é hegemônica no MP e no Judiciário. Inclusive nas formas de atuação, nos métodos heterodoxos e nas ilegalidades.
Os contornos do controle são definidos pelos próprios integrantes dessas carreiras onde a Lava Jato é hegemônica. E qualquer iniciativa na esfera criminal depende do MPF, que tem se mostrado extremamente corporativista.
Não tenho muita expectativa de responsabilização além da esfera administrativa, no CNJ e, com mais dificuldade ainda, no CNMP.
Esses conselhos são acusados de agir de maneira corporativista. O que faz com que o espírito de corpo se sobreponha inclusive a desvios cometidos por juízes e procuradores?
Os dois conselhos têm uma maioria de membros das próprias carreiras. O resultado é um perfil de quem atua muito mais em defesa dos interesses corporativos do que do controle externo que a sociedade espera.
No caso do MP isso é ainda mais forte. Para ilustrar, vou dar um dado de uma pesquisa que vamos publicar em breve. Constatamos que 77% de todos os membros do MP que se tornaram conselheiros do CNMP até 2020 tiveram passagem nas diretorias de associações de classe, que defendem os interesses corporativos de seus membros.
Isso ajuda a entender porque o CNMP não atuou durante a Lava Jato e porque mesmo agora, ao contrário do que o CNJ faz por iniciativa do ministro Salomão, não faz nada sobre tudo que aconteceu na operação.
Para a gente entender a Lava Jato, é preciso entender essa dimensão corporativa, que envolve a expansão do poder de membros do MP.
Você costuma usar o conceito de corporativismo predatório nessas carreiras. O que define ele?
Existe corporativismo em qualquer lugar do mundo. O ponto central no Brasil é um tipo de corporativismo que a gente não observa em outros países. Que é avesso a qualquer forma de controle externo e democrático dessas carreiras.
Tudo em nome de uma autonomia, como se os políticos fossem interferir no funcionamento do Judiciário e do MP. O que eles não falam é que os procuradores e juízes fazem política cotidianamente, estão semanalmente no Congresso.
Esse corporativismo é predatório também na defesa irrestrita de privilégios. Isso é muito forte no Brasil e ganha contornos que a gente não verifica em outros países.
Todo tipo de penduricalhos, de pagamentos de verbas anteriores sem passar por precatório, decisões administrativas que possibilitam todo tipo de vantagem — de auxílio moradia a recentemente pagamentos por acúmulo de acervos.
Qual é o papel das associações de classe, como a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) e a Ajufe (Associação dos Juízes Federais), na perpetuação desse corporativismo?
O que essas associações fazem no CNJ e no CNMP não é nem aparelhamento, é uma captura desses conselhos por interesses privados. São associações privadas que defendem interesses apenas de seus associados, mas se inserem no debate público como defensoras do interesse público.
Há muitos anos a ANPR se organiza para influenciar o debate público, O objetivo é influenciar a discussão sobre o funcionamento do Estado e da democracia brasileira, quase como um partido político.
Luta não só pelo interesse corporativo de seus membros, mas para definir a trajetória do Estado brasileiro. Faz isso monitorando o Congresso Nacional, pressionando por mudanças legislativas e se servindo dos meios de comunicação.
Além dessa atuação no Congresso, luta para definir o funcionamento do Ministério Público Federal, ocupando postos em corregedorias, câmaras de coordenação e revisão e no conselho superior e, se conseguir emplacar a lista tríplice, até mesmo na PGR e por consequência controlando a agenda do CNMP, já que o PGR preside este conselho.
A confusão entre o público e o privado é uma característica disso. A ANPR, uma associação de direito privado, pode receber qualquer pessoa, física ou jurídica, em sua sede para conversar. Só que ela — ANPR — funciona dentro do prédio da PGR.
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