ICL Notícias
Jorge Mizael

Cientista político, doutorando pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), com foco em comportamento político e estudos sobre mudanças constitucionais. Fundador da Metapolítica, consultoria premiada no Oscar da Comunicação Política Mundial em 2020 pela The Washington Academy of Political Arts Sciences. Indicado, em 2021, como Consultor Político Revelação pela mesma instituição. Colunista do portal ICL Notícias, onde analisa questões políticas e institucionais com ênfase em governança e a relação entre o Legislativo e o Executivo.

Colunistas ICL

Erros, pressões e recuos: a construção do processo decisório no Governo Lula

Os sucessivos recuos do governo Lula revelam um padrão de hesitação que enfraquece a governabilidade e amplia o desgaste político
23/01/2025 | 05h00
ouça este conteúdo
00:00 / 00:00
1x

O cenário atual do Governo Lula

Com uma plataforma que prometia retomada do crescimento, fortalecimento da democracia e políticas sociais mais robustas, o governo iniciou sem orçamento e dialogando com um Congresso hostil e partidariamente fragmentado. Apesar da experiência acumulada em mandatos anteriores, o início desta nova gestão revelou fragilidades em seu processo decisório, expondo a dificuldade de lidar com pressões sociais e políticas em um contexto de alta volatilidade.
Entre as questões que mais chamaram atenção está a tendência do governo a recuar em decisões importantes após sua implementação, muitas vezes por meio de Medidas Provisórias (MPVs). Esses episódios, em vez de demonstrarem flexibilidade política, têm sido percebidos, apesar da ampla experiência acumulada, como sinais de imaturidade no processo de governança. A falta de articulação prévia com atores-chave e a subestimação do impacto social de algumas medidas resultam em desgaste político precoce e em questionamentos sobre a capacidade do governo de liderar com consistência.

O papel das Medidas Provisórias no processo decisório

As MPVs são instrumentos legislativos apresentados exclusivamente pelo Presidente da República, criadas para tratar de questões urgentes e relevantes que demandam uma resposta ágil. Ao serem editadas, entram em vigor imediatamente, mas dependem da aprovação do Congresso Nacional, em até 120 dias, para se tornarem leis em definitivo. Essa característica confere às MPVs uma posição estratégica no arcabouço normativo do país, utilizadas historicamente para implementar decisões políticas de grande impacto. Exemplos emblemáticos incluem a MPV 168/1990, que instituiu o confisco da poupança durante o governo Collor, uma medida controversa e de forte repercussão social. Outro exemplo, é a MPV 1027/1995, que criou os fundamentos do Plano Real, estabilizando a economia após anos de hiperinflação. Esses casos ilustram como as MPVs, quando bem articuladas, podem promover mudanças estruturais e transformar cenários críticos.

No entanto, a natureza das MPVs exige uma combinação delicada de técnica e sensibilidade política. Embora sejam instrumentos de rápida implementação, sua legitimidade e eficácia dependem de uma leitura apurada do ambiente político e social. A edição de uma MPV sem o devido diálogo com atores estratégicos ou sem considerar seus possíveis impactos pode gerar reações adversas, comprometendo não apenas a medida em si, mas também a credibilidade do governo. Assim, enquanto as MPVs são fundamentais para lidar com emergências e impulsionar políticas públicas relevantes, seu uso requer um planejamento criterioso. Essa exigência é ainda mais evidente em contextos como o atual, marcado por radicalização e fragmentação partidária no Congresso, onde a construção de consensos é imprescindível para evitar desgastes políticos e recuos que enfraquecem a governabilidade.

Os cinco recuos mais significativos

O governo Lula enfrentou críticas e ampla pressão social em razão de decisões que, tomadas inicialmente por meio de Medidas Provisórias, foram posteriormente revogadas. Esses recuos, que vão além de ajustes técnicos, revelam a dificuldade de alinhar expectativas sociais com decisões políticas.

A seguir, cinco MPVs emblemáticas que ilustram essa dinâmica.

  • A MPV 1208/24, que revogava a reoneração da folha de pagamentos de 17 setores econômicos, tinha como objetivo reduzir o impacto fiscal, alinhando-se ao compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas. No entanto, a medida gerou forte reação de grupos contrários, que argumentaram “perda de competitividade e ameaças à geração de empregos”. Sob pressão de empresários, sindicatos e parlamentares, o governo optou por recuar, revogando a MPV em nome de evitar um desgaste maior no Congresso.
  • A MPV 1206/2024, que aumentava a faixa de isenção do Imposto de Renda, foi inicialmente celebrada como um avanço. Porém, críticas e questionamentos vieram sobre os benefícios da medida na arrecadação e sua sustentabilidade perante um orçamento já pressionado. Diante de resistências no Congresso, o governo novamente recuou, frustrando expectativas de parte importante do seu eleitorado.
  • A MPV 1245/2024, que ampliava o limite da subvenção econômica para pequenas empresas afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, foi uma tentativa de resposta rápida à crise ambiental no estado. Contudo, houve contestação de estados não contemplados, que argumentaram tratamento desigual em situações semelhantes. A pressão regional e as dificuldades no Congresso levaram o governo a revogar a medida.
  • A MPV 1272/2024 autorizava o governo federal a conceder descontos em operações de crédito rural contratadas entre 6 e 22 de setembro de 2024, especialmente para produtores do Rio Grande do Sul afetados por calamidades climáticas. Nesse caso, agricultores apontaram critérios inadequados e, como resultado, a medida foi revogada semanas depois de sua publicação.
  • O caso do Pix também foi alegórico. Aqui a MPV 1288/2025 não foi revogada como nos momentos anteriores, mas apresentada como antidoto à crise advinda da Instrução Normativa RFB nº 2219/2024, sobre a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações financeiras. Vídeos de oposicionistas, como do senador Cleitinho (REP) e do deputado Nikolas (PL), ambos de Minas Gerais, inflaram uma rejeição virtual e o governo novamente desistiu de uma decisão governamental que havia tomado.

O impacto dos recuos na imagem do Governo

Os recuos constantes nas decisões tomadas pelo governo Lula têm causado impacto na confiança de sua base eleitoral e dos aliados políticos. Para grande parte dos eleitores que depositaram esperança em um terceiro mandato capaz de oferecer estabilidade e progresso, essas mudanças de rumo são interpretadas como sinais de fragilidade e falta de diálogo interno. A base parlamentar, por sua vez, tem demonstrado desconfiança, especialmente em setores que esperam maior coordenação e firmeza nas ações do Executivo. Essa hesitação nas decisões reforça a impressão de que o governo está mais preocupado em reagir a pressões externas (especialmente das redes sociais) do que em conduzir uma agenda política sólida, comprometendo a construção de alianças para aprovações no Congresso.

Conclusão: lições e caminhos para maturidade política

Ao ceder às pressões, o governo perde força política, tornando-se ainda mais suscetível às críticas e pressões futuras. Os recorrentes recuos do governo Lula expõem um “ciclo fragilizante”. Cada revogação gera desgaste político e reduz a confiança da sua base eleitoral e dos aliados, assim como da sociedade. Esse padrão de hesitação e improviso no processo decisório compromete a percepção de governabilidade e enfraquece o Executivo diante de um Congresso cada vez mais faminto por poder.

Para romper esse ciclo, o governo precisa adotar práticas que priorizem o diálogo prévio com atores políticos e sociais. A articulação política deve ir além do convencimento parlamentar, incluindo líderes de setores econômicos, sindicatos, cooperativas e associações, diretamente impactados pelas medidas propostas. Além disso, é fundamental que a comunicação governamental seja integrada ao processo decisório desde o início. A comunicação não pode ser tratada como um fim em si, mas como um meio para construir melhores narrativas e mobilizar apoio antes que decisões sejam implementadas. Esse diálogo prévio não apenas evita surpresas negativas, mas também fortalece a legitimidade das ações do governo.
A maturidade política não está em evitar pressões, mas em antevê-las e enfrentá-las com clareza e firmeza, construindo uma liderança mais consistente e efetiva.

Relacionados

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail