O campo de concentração alemão em Auschwitz recebia quem chegasse com a frase em ferro no alto do portão principal: “O trabalho liberta”. A ironia macabra de ter uma inscrição deste tipo na entrada de um local onde a morte era a senhora, é que ela foi forjada pelos próprios prisioneiros, os que eram hábeis em metalurgia.
O bordão foi colocado em vários campos da Alemanha nazista e poderia estar sepultado para sempre junto com os próprios campos, no esgoto das piores criações da humanidade, mas a frase se atualiza década após década nos últimos 80 anos.
A versão 2.1 está camuflada em meritocracia vazia, vociferada por alguns que — vamos usar a expressão em português — se autointitulam “treinadores”. O buraco da questão trabalhista no Brasil e no mundo é muito, muito fundo.
O esforço pessoal não é nem de longe suficiente para garantir sucesso algum, sem as oportunidades que são obrigação de estados omissos e sistemas de justiça que nunca promoveram e, apesar do grande esforço de segmentos conscientes, não promovem equidade.
Um país viciado em hipocrisia é levado a outro vício, heroísmo. Quem não tem uma história de superação para contar é olhado como culpado pelos próprios fracassos e não é visto como valoroso o suficiente para “chegar lá”.
Resumindo, culpa-se a vítima pela própria desventura. Algo feito com muita competência quando se deseja brincar de não enxergar a desgraceira causada pela lógica de promoção do esforço desacompanhado de direitos.
Abril foi o mês para se pensar nisso, pois vários episódios mostraram uma ponta do mapa de terror das condições de trabalho no Brasil. Aquele que não devolve sustento, apenas desespero.
O site The Intercept Brasil divulgou no último dia 17, os tenebrosos resultados da pesquisa da UNICAMP sobre entregadores de aplicativos. Temos uma massa gigantesca de pessoas com menos de 40 anos, com pressão alta, exaustas, desidratadas, famintas.
Repetindo: FAMINTAS. Alguém que entrega comida com a barriga roncando, está no nível de crueldade semelhante ao daquele que, prisioneiro-trabalhador forçado marcado para morrer, se via obrigado a malhar o ferro na bigorna para grafar que o trabalho liberta.
No dia 5 deste mês o Ministério do Trabalho e Emprego atualizou a “Lista Suja”, ou seja, a relação de empregadores que se utilizam de trabalho análogo à escravidão. Foi o maior número de inclusões da história, com 248 novos empregadores no Cadastro.
Entre esses, 43 foram inseridos por práticas de trabalho análogo à escravidão no âmbito doméstico. Esta categoria, a do trabalho doméstico, é uma das que mais nos aproxima do Brasil pré 1888, reeditando o “modus operandi” das senzalas em pleno século 21. Nesta prateleira estão também a lavoura e construção civil.
Dalton e Valdirene Rigueira, que escravizaram a trabalhadora doméstica negra Madalena Gordiano, foram condenados no último dia 16 pela Justiça Federal de Minas Gerais a penas que ultrapassam 14 anos de prisão, além de multas e indenizações de quase R$ 1,3 milhão à vítima. Irão recorrer em liberdade os membros da família que escravizou Madalena por 39 anos. Trinta e nove…
As palestras motivacionais que falam em ousadia e risco não contam que o risco é de vida para a maioria precarizada do Brasil e de entrada no grupo precarizado para os medianos que não se atentam que antes de enobrecer ou libertar o trabalho pode humilhar e desumanizar… e muito.
A nossa relação tenebrosa com algo do qual não conseguimos escapar, a obrigatoriedade de passar mais da metade das 24 horas do dia em atividades extenuantes, mal pagas e feitas para enriquecer gente que não é capaz de dar bom dia para quem sua para produzir a sua riqueza, faz a alegria dos vendedores de fazenda na lua e resort em Marte.
O antídoto para a atualização de velhas formas de exploração também não é novo e atende pelo nome de mobilização. Teremos condições de resgatá-la antes que o trabalho acabe por aprisionar ainda mais, quando de fato deveria servir como promoção e liberação do ser humano?
O futuro dirá, mas não será pela voz de nenhum treinador de empresa, contratado para dizer que apenas trabalhando a “mágica” acontece.
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