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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Colunistas ICL

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – IV

Preparado o clima, é finalmente chegado o momento de agir
09/09/2024 | 07h57

Tomar o poder

Hora de retomar e concluir a leitura da distopia de Margaret Atwood, “O conto da aia”. Na penúltima coluna, deixei uma pergunta sem resposta: como os fundamentalistas tomaram o poder, estabelecendo uma ordem social teonomista?

Vimos nas colunas anteriores que esse movimento não ocorreu de uma hora para outra; pelo contrário, foi preparado por meio da naturalização de práticas até então consideradas não somente conservadoras, mas também reacionárias. A lista é eloquente: revistas e livros queimados em praça pública; cerceamento contínuo de direitos, especialmente das mulheres; imposição gradual de uma mentalidade excludente e fundamentalista; manutenção de uma atmosfera política de tensão permanente, gerando instabilidade política sem resolução aparente; invenção incansável de inimigos imaginários e bodes expiatórios.

Preparado o clima, é finalmente chegado o momento de agir:

“Foi depois da catástrofe, quando mataram a tiros o presidente e metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a culpa aos fanáticos islâmicos”.

(Ou os indefectíveis comunistas. Ou os maquiavélicos globalistas. Quem se importa? Qualquer justificativa que autorize a tirar do quepe um artigo 142 para chamar de seu.)

“Mantenham a calma, diziam na televisão. Tudo está sob controle. Fiquei atordoada. Todo mundo ficou, sei disso. Era difícil de acreditar. O governo inteiro massacrado daquela maneira. Como conseguiram entrar, como isso aconteceu?

Foi então que suspenderam a Constituição. Disseram que seria temporário. (…)”

(“Temporário”: tudo depende da interpretação, claro está. Em algumas latitudes, o termo quer dizer “21 anos”.)

“(…) Não houve sequer nenhum tumulto nas ruas. As pessoas ficavam em casa à noite, assistindo à televisão, em busca de alguma direção. Não havia nem um inimigo que se pudesse identificar”. [1]

Os óbvios paralelos com a articulação golpista que se preparou durante o governo Bolsonaro não devem surpreender, pois se relacionam com o projeto de Margaret Atwood, tal como explicitado pela autora:

“Estabeleci uma regra para mim mesma ao escrever ‘O conto da aia’: não incluiria nada que as pessoas já não tivessem feito em algum momento, em algum lugar, ou que lhes faltasse a tecnologia para fazer. Em outras palavras, eu não inventaria nada. Vários precedentes históricos podem ser encontrados no Epílogo, que alega ser uma palestra sobre o texto, ministrada cem anos depois dos acontecimentos descritos”. [2]

Como não pensar no terraplanismo jurídico de Ives Gandra Martins em sua exegese involuntariamente surrealista do artigo 142 da Constituição Federal? A ressurreição anacrônica, e no limite irresponsável, de um redivivo Poder Moderador, agora atribuído às Forças Armadas, forneceu o combustível que impulsionou o delírio da militância bolsonarista desde a publicação do malfadado texto, “Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”. Saído na plataforma Consultor Jurídico, em 28 de maio de 2020, e lido pelos partidários do mito com olhos bem fechados, a frase que sintetiza a miopia do jurista foi alçada ao patamar de oráculo pelos defensores da permanência de Jair Messias Bolsonaro no poder a qualquer custo:

“No que sempre escrevi, nestes 31 anos, ao lidar diariamente com a Constituição — é minha titulação na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie —, é que também se o conflito se colocasse entre o Poder Executivo Federal e qualquer dos dois outros Poderes, não ao Presidente, parte do conflito, mas aos Comandantes das Forças Armadas caberia o exercício do Poder Moderador”. [3]

A partir desse instante, nas inúmeras manifestações preparatórias do golpe de Estado, a aguerrida militância adotou como autêntico mantra a fórmula “Eu autorizo”, cuja tradução bem poderia ser a palavra de ordem na República de Gilead: “Nós autorizamos a convocação das Forças Armadas”. Sem dúvida, recurso autoritário que, como na distopia de Margaret Atwood, “seria temporário”.

Por isso, ainda durante o governo, Bolsonaro tudo fez para aumentar ao máximo a tensão com o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral; por isso, o ministro Alexandre de Moraes foi transformado em inimigo maior e alvo preferencial. A desmoralização do Poder Judiciário pretendia ser a antessala do golpe. O objetivo era gerar uma situação de caos social que teoricamente abriria caminho para a intervenção militar. A dissonância cognitiva coletiva, [4] produzida deliberadamente pela cúpula do bolsonarismo, culminou na invasão e depredação da sede dos 3 Poderes no dia 8 de janeiro de 2023. A tentativa de explosão de uma bomba no aeroporto de Brasília em dezembro de 2022 era parte do mesmo plano, assim como a paralisação das rodovias e a concentração de milhares de bolsonaristas inconformados com o resultado da eleição presidencial diante de quartéis em todo o país. O delírio se materializou nas míticas 72 horas, ao fim das quais as Forças Armadas exerceriam o Poder Moderador, mantendo Bolsonaro no poder.

***

— João, agora me perdi! Este não é o último artigo dedicado à análise de “O conto da aia”? Por que essa digressão? A ditadura de Bolsonaro seria o modelo tropical da República de Gilead?

— E você tem dúvida? Não é verdade que desde maio de 2020 vivemos ameaçados pela naturalização da hermenêutica de alfaiate de Ives Gandra Martins?

— Bom, isso é inegável; caso contrário, não se insistiria tanto na fantasia das 72 horas…

— Na imposição da República de Gilead, muitos absurdos foram aceitos como se fizessem parte da normalidade do dia a dia. Até que um dia foi tarde demais e já não se pôde voltar atrás.

***

E, no entanto, manter o controle todo o tempo é uma luta vã — como lutar com as palavras,

Perder o poder

Estruturalmente, “O conto de aia” equivale à transcrição das gravações feitas clandestinamente pela protagonista-narradora, cujo nome verdadeiro se perdeu:

“Meu nome não é Offred, tenho outro nome que ninguém usa porque é proibido. Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o número de seu telefone, útil apenas para os outros; mas o que digo a mim mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e buscar, algum dia”. [5]

As circunstâncias do registro são esclarecidas no epílogo do romance, “Notas históricas”, composto igualmente por “uma transcrição parcial das atas do Décimo Segundo Simpósio sobre Estudos Gileadeanos, realizado (…) em 25 de junho de 2195”. [6] Estabelecida em meados da década de 1980, a República de Gilead chegou ao fim — não se sabe exatamente a data, porém é certo que o regime fundamentalista foi derrotado. A organização dos “Estudos Gileadeanos” é a demonstração do declínio da ordem teocrática descrita em “O conto da aia”.

(Como um deserto isso vai passar. Por isso resistindo estou.)

O risco, contudo, não passou — e talvez nunca seja o caso. Poderíamos repetir sem hesitação a advertência de Margaret Atwood ao assinalar a importância da literatura especulativa de Aldous Huxley e George Orwell na sua obra:

“Vocês dois faziam revezamento nos acertos. Por exemplo, recentemente nos Estados Unidos chegaram muito perto de um golpe de Estado. Invasão do Capitólio. Tentativa de fraudar resultados eleitorais”. [7]

Não deixa de ser um alívio que ocorreu nos Estados Unidos essa tentativa de impor um regime ditatorial, com forte apoio em correntes fundamentalistas, defensoras de uma visão teonomista do mundo.

Um lugar distante — portanto.

 

(Nada a ver com o Brasil.)

 

[1] Margaret Atwood. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 208, grifos meus.
[2] Margaret Atwood. “Reflexões sobre O conto de aia”. In: Questões incendiárias. Ensaios e outros escritos de 2004 a 2021. Tradução de Maira Parula. Rio de Janeiro: Rocco, 2024, p. 327.
[3] Ives Gandra Martins. “Cabe às Forças Armadas moderar os conflitos entre os Poderes”: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/ives-gandra-artigo-142-constituicao-brasileira/.
[4] Desenvolvo o conceito de “dissonância cognitiva coletiva” em Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico. Retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2023.
[5] Margaret Atwood. O Conto da Aia. Op. cit., p. 103.
[6] Idem, p. 351.
[7] Margaret Atwood. “Entrevista com o morto”. In: Tig & Nell e outros contos. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Rocco, 2024, p. 93.

 

SAIBA MAIS:

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – I

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – II

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – III

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