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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – II

Romance distópico de Margaret Atwood, "O conto da aia", de 1985, tornou-se inesperadamente atual no cenário brasileiro
12/08/2024 | 05h00

Atenção!

Talvez esteja avançando muito rapidamente nesta nova série de artigos. Isto é, pensei em oferecer nesta semana o esboço da cronologia do plano de poder que principiei a descrever. Contudo, antes de elencar fatos, não seria mais adequado dar um passo atrás, a fim de refletir acerca do processo em curso no Brasil?

Se a hipótese que apresentei na última coluna lhe pareceu interessante, o desafio que temos pela frente é nada menos do que formidável: a convergência não necessariamente panejada, mas por isso mesmo ainda mais forte, de três fatores: a Teologia do Domínio, a extrema direita e o militarismo.

No tempo de antes

O romance distópico de Margaret Atwood, “O conto da aia”, lançado em 1985, tornou-se inesperadamente atual no cenário brasileiro contemporâneo.

A autora canadense descreve o estabelecimento da República de Gilead, uma ordem teocrática surgida após guerras intermináveis, que ajudaram a criar um sentimento de medo permanente. Em meio ao pânico social, um grupo religioso fundamentalista tomou o poder, prometendo nele permanecer apenas de forma temporária, mas, uma vez instalados no comando, não mais abriram mão de sua posição, iniciando um longo período de autoritarismo.

(Em abril de 1964 os militares deram um golpe teoricamente para organizar as eleições presidenciais de 1965. A ditadura só terminou em 1985.)

Uma estrutura linguística particular atravessa a narrativa, como se fosse um autêntico baixo contínuo e com a função de ordenar o ritmo da história. Logo no começo do romance, no capítulo cinco, a leitora encontra a régua e o compasso da escrita:

“As calçadas aqui são de cimento. Como uma criança, evito pisar nas rachaduras. Estou me lembrando de meus pés nas calçadas, no tempo de antes, e o que eu costumava usar neles”. [1]

Você se deu conta? Eis a expressão que descortina a atmosfera do romance: “no tempo de antes”. Na primeira ocorrência, talvez não se dê a importância devida à marcação temporal, porém como ela retorna uma e outra vez, e ainda tantas outras, torna-se claro que estamos diante de um artifício decisivo.

Vejamos outro exemplo, com uma pequena variação:

“A cozinha cheirava a fermento, um cheiro nostálgico. Remete-me a outras cozinhas, cozinhas que eram minhas. É um cheiro de mães; embora minha mãe não fizesse pão. É um cheiro de mim, em tempos anteriores, quando eu era mãe”. [2]

“Em tempos anteriores” ou “no tempo de antes”: a dimensão temporal sugerida pelas expressões é enganadora. À primeira vista, imaginaríamos uma época distante, quase mítica, muito tempo atrás. Daí o “cheiro nostálgico”, memória afetiva sem correspondência empiricamente localizável.

No entanto, a leitura de “O conto da aia” revela o oposto, qual seja, a imposição do fundamentalismo no dia a dia foi recente! Estamos ainda no capítulo cinco. A protagonista e narradora, Offred, recorda um encontro com turistas japonesas, cujas atitudes e roupas tanto perturbam quanto deslumbram as mulheres da República de Gilead:

“Paro de andar. Ofglen para ao meu lado e sei que ela também não conseguiu tirar os olhos daquelas mulheres. Estamos fascinadas, mas ao mesmo tempo sentimos repulsa. Elas parecem despidas. Foi preciso tão pouco tempo para mudar nossas ideias a respeito de coisas como essa.

Então penso: eu costumava me vestir assim. Isto era liberdade”. [3]

Passagem sombria que ilumina o ponto mais atual da distopia de Margaret Atwood.

Qual o tempo necessário?

A narradora se surpreende consigo mesma: “Foi preciso tão pouco tempo” para que a mentalidade e os hábitos fossem radicalmente transformados. A observação intriga: então é assim que a República de Gilead se impôs? Sem dúvida, o poder político foi tomado violentamente e exercido da forma a mais fundamentalista possível. No entanto, e esse aspecto vale ouro, prévia à demonstração final de força, os líderes religiosos avançaram passo a passo. Aqui e ali, a narradora adquire consciência do processo que conduziu à distopia teocrática, como sua recordação de um episódio que no momento em que ocorreu parecia apenas um evento excêntrico, sem maiores desdobramentos. A protagonista, ainda jovem, estava no parque com sua mãe: “havia mulheres queimando livros”, como se fosse uma atividade perfeitamente pessoal num sábado qualquer:

“Havia alguns homens também, em meio às mulheres, e os livros eram revistas. Devem ter derramado gasolina, porque as chamas irromperam altas, e então começaram a descarregar as revistas, de caixas, não muitas de cada vez. Alguns estavam cantando hinos; curiosos começaram a se juntar.

Os rostos deles estavam felizes, extasiados”. [4]

Mais grave do que a cena descrita é a sua naturalização. Não somente a mãe da narradora — embora tenha tido um passado de rebeldia e independência — envolve-se na inquisição em tom menor, como também não se opõe a que sua filha seja estimulada a participar:

“Atirei a revista nas chamas. As folhas crepitaram abertas com o sopro de sua própria combustão, grandes flocos de papel se soltaram, voaram no ar, ainda em chamas, partes de corpos de mulheres transformando-se em cinza negra, no ar, diante dos meus olhos”. [5]

O tempo necessário para o advento de uma ordem social teonomista não é exclusivamente cronológica. Melhor dito: não se trata de uma sucessão linear de efeitos acumulados. O projeto da Teologia do Domínio depende da interiorização de uma série de comportamentos que, vistos isoladamente, confundem-se com o absurdo da queima de livros e de revistas em praça pública. Reunidos, contudo, por contágio mimético, tais comportamentos implicam uma visão do mundo assustadoramente coerente, numa lógica de ferro impenetrável desde o exterior.

(Imagine 58 milhões de pessoas compartilhando essa visão do mundo…)

Diante dos nossos olhos

É isso mesmo: diante dos nossos olhos assistimos à convergência da Teologia do Domínio com a extrema direita e o militarismo. Podemos fingir que a democracia não será destruída como resultado dessa convergência; podemos naturalizar aberrações como o projeto-lei 1904; podemos julgar aceitável que a Polícia Militar de São Paulo estreite laços com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD); podemos até julgar corriqueiro que a Frente Parlamentar Evangélica ocupe postos estratégicos em comissões relevantes do Congresso Nacional, a fim de assegurar que leis favoráveis à doutrina que defende sejam aprovadas. Mas não nos esqueçamos da lição das coisas reforçada pela tutora das futuras aias:

“O costumeiro, dizia Tia Lydia, é aquilo que vocês estão habituadas. Isto pode não parecer costumeiro para vocês agora, mas depois de algum tempo será. Irá se tornar corriqueiro”. [6]

[1] Margaret Atwood. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p 35, grifos meus.
[2] Idem, p. 59–60, grifos meus.
[3] Idem, p 40, grifos meus
[4] Idem, p 50.
[5] Idem, p. 51, grifos meus.
[6] Idem, p 46.

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