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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Tempestade perfeita: o encontro das potestades – III

Temos uma guerra em curso
19/08/2024 | 08h25

Antes que seja tarde

Na última coluna assinalei um dos efeitos mais perturbadores da distopia fundamentalista de Margaret Atwood, “O conto da aia“, especialmente se pensarmos no cenário brasileiro contemporâneo.

Você se recorda, não? Destaquei o passo a passo na imposição de uma ordem política teonomista, isto é, uma ordem que subordina a Constituição ao Antigo Testamento. Aqui, retornamos à estratégia desenhada por Gary North, analisada nos meus primeiros artigos, [1] cujo pressuposto concentra-se numa hermenêutica fraudulenta do versículo 28 do primeiro capítulo do Gênesis. No primeiro momento, deve-se obedecer à Lei:

“– Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e sujeitem-na”.

Multiplicação a ser obtida nos tempos atuais pelo proselitismo religioso, a fim de tornar os cristãos maioria do eleitorado, ou no mínimo uma parcela suficientemente significativa a ponto de decidir eleições majoritárias. Nesse instante decisivo, o segundo ponto já pode ser ensaiado:

“– Tenham domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja pela terra”. [2]

A manipulação do repertório bíblico é uma das chaves do êxito de líderes religiosos inescrupulosos que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, assumiram um plano declarado de poder. Essa passagem é o sal da terra no propósito de adulteração do Antigo Testamento com finalidade política: “Tenham domínio”. O artifício se baseia numa improbabilidade histórica: no contexto do Gênesis, a noção de cristão não faz sentido algum; aliás, no conjunto do corpus veterotestamentário a ideia de que a exortação se refira aos cristãos é propriamente absurda.

(O absurdo não atemoriza líderes religioso que transformaram o púlpito num palanque permanente.)

Hora de voltar à ficção para melhor apreender o que se desenrola diante de nossas retinas tão fatigadas.

Temos uma guerra em curso

No ensaio programático de Gary North, “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”, publicado em 1982, um autêntico manifesto-manual para a guerra de guerrilhas do nacionalismo cristão, a justificativa para o desenvolvimento de um plano de poder de longo prazo não poderia ser mais ostensiva:

“A trégua ao humanismo chegou ao fim. Uma guerra está em curso”. [3]

“A war is in progress”: conflito a ser travado no dia a dia, pouco a pouco, antes do golpe final ser arriscado. Não se trata de uma experiência traumática de ruptura absoluta de uma hora para a seguinte, mas, pelo contrário, o objetivo é conquistar o maior número possível de corações e mentes para só então consumar o propósito de estabelecer uma ordem social teonomista.

(Conquistar corações e mentes — e mãos, acrescentou com verve o Papa Francisco. As mãos, especialmente de jovens, sempre ágeis na manipulação das redes sociais.)

Três anos após a publicação do artigo de Gary North, a escritora canadense Margaret Atwood lançou “The Handmaid’s Tale”. Na recordação da narradora-protagonista Offred, o processo que levou ao estabelecimento da República de Gilead guarda notáveis semelhanças com o manifesto de um dos nomes mais importantes do reconstrucionismo cristão, um dos mais destacados promotores da Teologia do Domínio.

A passagem é longa, mas vale cada palavra.

“É a história habitual, as histórias habituais. Deus para Adão, Deus para Noé. Frutificai e multiplicai-vos, enchei abundantemente a terra”.

(No original, Atwood cita a tradução da King James Bible; em português, o mais adequado seria reproduzir a Nova Almeida Atualizada.)

“Então vem aquele negócio velho e bolorento da Raquel e da Lea que nos martelaram na cabeça no Centro. (…) Ouvíamos isso ser lido para nós todo dia de manhã durante o desjejum, enquanto sentávamos na cafeteria da escola, comendo mingau com creme e açúcar mascavo. Vocês estão recebendo o que há de melhor, dizia tia Lydia. Temos uma guerra em curso, as coisas são racionadas. (…)”

(No original, “There’s a war on”, numa proximidade inquietante com o grito de guerra de Gary North, “A war is in progress”.)

“Na hora do almoço eram as Beatitudes. Bem-aventurado isso bem-aventurado aquilo. Elas punham para tocar uma gravação em disco, a voz era de um homem. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os misericordiosos. Bem-aventurados os mansos. Bem-aventurados os que se calam. Eu sabia que este último eles tinham inventado, sabia que estava errado, e que tinham excluído partes também, mas não havia nenhuma maneira de verificar”. [4]

A razão pela qual não se podia denunciar a manipulação do texto bíblico foi explicada poucas páginas atrás:

“A Bíblia é mantida trancada, da mesma maneira como as pessoas antigamente trancavam o chá, para que os criados não o roubassem. É um instrumento incendiário: quem sabe o que faríamos com ela, se puséssemos nossas mãos nela? Podemos ouvi-la lida em voz alta, por ele, mas não podemos ler”. [5]

Há tanto a extrair dessas passagens que não sei exatamente por onde começar.

Em primeiro lugar, salta aos olhos a força da ficção de Atwood. A narradora acerta no alvo ao escolher o versículo 28 do primeiro capítulo do Gênesis para expor a apropriação fraudulenta da Bíblia: exatamente o trecho deturpado pelos adeptos da Teologia do Domínio. A manipulação vulgar, definidora do proselitismo do nacionalismo cristão, é revelada pela percepção da narradora, “Eu sabia que este último eles tinham inventado”. Hermenêutica “criativa”, indispensável na consecução do plano de poder político, pois sem essa “criatividade” como seduzir a multidão crescente de fiéis e orientar suas escolhas políticas?

Por isso, a proibição de acesso à Bíblia — ela “é mantida trancada” — descortina o paradoxo maior das correntes evangélicas que se esqueceram das advertências de Jesus Cristo sobre a natureza diversa de sua mensagem em relação ao exercício do poder. O protestantismo histórico é impensável sem a consulta direta das Escrituras, na iluminação propiciada pelo Verbo. Uma ordem teonomista que proíba a leitura da Bíblia é uma contradição em termos, mas facilmente compreensível em virtude das deturpações deliberadas do texto sagrado.

Na próxima semana concluirei a leitura de “O conto da aia”, quando tentarei responder à pergunta prenhe de questões que levam longe: como os fundamentalistas chegaram ao poder na República de Gilead?

(Conto com a sua companhia?)

 

[1] “Teologia do Domínio: Fundamentos — I”: https://iclnoticias.com.br/teologia-do-dominio-fundamentos-i/.
[2] Gênesis 1: 28. Nova Almeida Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018, p. 29-30, grifos meus.

[3] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. In: James B Jordan. The Failure of the American Baptist Culture. Christianity and Civilization. N° 1, Spring 1982. Geneva Divinity School, p. 40. Tradução de José Luiz Rangel.
[4] Margaret Atwood. O Conto da Aia. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, p. 109, grifos da autora.
[5] Ibidem, p 107.

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