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Dois passos

Na última coluna expus a tática dos dois passos, defendida sem rodeios por Gary North, rumo à tomada do poder político pelo nacionalismo cristão. A estratégia subjacente à doutrina busca legitimar-se numa interpretação das Escrituras que se apresenta como literalista, embora explicite a manipulação do repertório bíblico, especialmente do texto veterotestamentário, por parte de líderes religioso oportunistas.

Voltemos ao versículo 28 do primeiro capítulo do Gênesis:

“E Deus os abençoou e Deus lhes disse:

— Crescei, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai (…)”. [1]

Numa hermenêutica perversamente submetida ao projeto político teocrático, os adeptos da Teologia do Domínio deturparam o versículo, suspendendo a leitura na presença da ação que realmente lhes interessa: “dominai”.

Em inglês, você se recorda, o substantivo enfatiza a mensagem: “and have dominion over…”.

Eis o artifício interpretativo: aproveitar-se da liberdade religiosa para favorecer o aumento considerável do número de fiéis. Aqui, a guerra cultural é o sal da terra; instrumento principal na conquista de corações e mentes.

Na retórica hipocritamente lastreada no versículo do Gênesis, esse primeiro momento corresponde ao “Crescei, multiplicai-vos”. O cálculo é certeiro e se consuma no segundo instante. Multiplicados, os fiéis cumprirão o desígnio: “enchei a terra e submetei-a; dominai (…)”.

Tradução do postulado no universo da política brasileira: uma vez que a Constituição Federal tanto afirma o caráter laico do Estado quanto assegura a plena liberdade de manifestação religiosa, além de garantir às igrejas uma série não pequena de benefícios fiscais e tributários, deve-se aproveitar esse conjunto de facilidades para incrementar as ações de proselitismo, a fim de acelerar a multiplicação de fiéis.

Assim que o número se tornar eleitoralmente significativo, terá chegado a hora de eleger exclusivamente candidatos cristãos. O objetivo da manobra? Alterar as leis da República para forjar uma ordem social teonomista.

(Em coluna futura reconstruirei a cronologia dessa estratégia no cenário brasileiro: prepare-se para o susto.)

Sigamos na leitura do ensaio de Gary North, resgatando uma de suas passagens mais desinibidas:

“Portanto, sejamos diretos quanto a isso: devemos usar a doutrina da liberdade religiosa para conquistar a independência das escolas cristãs, até prepararmos uma geração de pessoas que compreenda que não existe neutralidade religiosa, lei neutra, educação neutra e governo civil neutro. Em seguida, essa geração se ocupará da construção de uma ordem social, política e religiosa baseada na Bíblia que finalmente negará a liberdade religiosa dos inimigos de Deus. O assassinato, o aborto e a pornografia serão ilegais”. [2]

A franqueza com que o autor descreve o propósito do nacionalismo cristão tem um quê de desfaçatez; afinal, o que se almeja é nada menos do que negar “a liberdade religiosa dos inimigos de Deus”. Sejamos tão diretos quanto o autor do livro “The Dominion Covenant”: o nacionalismo cristão transpõe para o mundo contemporâneo o conceito de guerra religiosa, tendo como principais campos de batalha a educação e a política.

Trata-se de eliminar a alteridade, pois só se aceitam leituras da Bíblia que estejam em consonância com os princípios rigorosos do nacionalismo cristão. Se não formos capazes de decifrar seus movimentos, se não reagirmos a tempo, os adeptos dessa vertente imporão um regime teocrático por meio de eleições livres e democráticas. Esse o paradoxo que ronda as democracias no Brasil e nos Estados Unidos.

(E não poderemos alegar que fomos surpreendidos…)

De olhos abertos lhe direi, nada jamais esteve oculto — os próprios nacionalistas cristãos divulgaram seu norte:

“Quando o sabor da vitória finalmente superar um século de recolhimento pietista, os humanistas verão sua civilização ser salgada; uma nova sociedade substituirá a atual ordem social que está em colapso. Se a Nova Direita Cristã abandonar sua esquizofrenia — pessimismo escatológico em face das vitórias, antinomianismo em face do poder da lei bíblica, uma filosofia ultrapassada de “base comum” (doutrina da neutralidade) em face de uma filosofia bíblica pressuposicional consistente —, então os humanistas finalmente terão de enfrentar uma verdadeira luta.” [3]

No texto, essa “real fight on their hands” imediatamente se converte na ameaça verdadeira que define o dia a dia conturbado das décadas iniciais do século 21: “A war is in progress”.

O sabor da vitória

The taste of victory” é a expressão-fio-de-Ariadne que nos auxilia a escapar do labirinto do fundamentalismo contemporâneo. Essa expressão sinaliza a promessa de poder político, a possibilidade real de alcançá-lo por meio de uma disposição inédita da Nova Direita Cristã; inicialmente norte-americana, hoje brasileira por efeito de contágio mimético.

Tudo fica meridiano se reconstruirmos o contexto de escrita do ensaio de Gary North. Publicado em 1982, o texto é um acerto de contas com Jimmy Carter e, ao mesmo tempo, o anúncio de uma proposta radical para o futuro da nação.

Na véspera da eleição presidencial que opôs o presidente democrata Jimmy Carter e o desafiante republicano Ronald Reagan, organizou-se em agosto de 1980 o Religious Roundtable com a intenção de sabatinar os candidatos. Sintomaticamente, apenas o político republicano compareceu ao encontro. O resultado marcou o limiar de um novo período da história estadunidense. A descrição de Gary North impressiona: estamos diante da aurora de um movimento cujo apogeu (ou apocalipse) é vivido atualmente na autêntica adoração religiosa a uma figura como Donald J. Trump.

“A imprensa compareceu. Esse foi o maior encontro político de fundamentalistas e religiosos conservadores da história recente. A atenção dada à reunião pelos representantes dos jornais e da TV indicou que eles entendiam a importância política da reunião. O que eles parecem não ter entendido é que aquela reunião era anormal. O fato de 15.000 pessoas terem comparecido ao que foi essencialmente um comício político cristão não foi reconhecido pelo que era de fato: uma espécie de divisor de águas para o fundamentalismo americano. O comício foi um evento político; mais precisamente, foi um comício pela política como tal e pelo envolvimento cristão na política. Foi uma ruptura com as quase seis décadas de omissão política por parte dos líderes religiosos fundamentalistas americanos.” [4]

Mas qual teria sido o motivo para uma mudança tão drástica? O autor não é parcimonioso na justificativa: uma decepção amarga com a eleição de Jimmy Carter à Presidência, que parecia significar um momento inédito para o nacionalismo cristão.

Carter principiou a atuar como diácono e professor na escola dominical da Igreja Batista na Georgia em 1942, aos 18 anos, e sempre ocupou postos de destaque na estrutura administrativa e no cotidiano de sua congregação. Manteve-se um cristão fervoroso toda a sua vida.

Na Presidência, interrompia o trabalho para orar e nunca deixou de proclamar a centralidade dos ensinamentos de Jesus em sua vida pessoal e na carreira política. Marido exemplar, pai de família modelo, filantropo, político íntegro, devotado como poucos à coisa pública.

(Um homem para todas as estações — portanto.)

Ora, por que os nacionalistas cristãos ingressaram na política de maneira decisiva justamente para derrotar um presidente associado historicamente à Igreja Batista e um homem respeitado por todos pela retidão de seu caráter? A resposta assusta: para a Nova Direita Cristão, não basta ser cristão; mais importante do que a fé professada pelo político é o exercício do governo segundo mandamentos cristãos. Nas palavras de North:

“Por volta de 1980, a Nova Direita Cristã já sabia o quão pouco a autoidentificação de Carter como um Cristão renascido realmente importava.

(…)

A Presidência de Carter foi um ponto de virada. Ela tornou óbvio para os eleitores fundamentalistas que as platitudes sobre ter nascido de novo significavam muito pouco quando comparadas com as políticas reais da administração”. [5]

Em outras palavras, é necessário implementar políticas públicas que conduzam a República em direção a uma ordem teonomista, subordinando a pólis à “palavra de Deus”. Como sempre, Gary North é cristalino: “‘Princípios da Bíblia’: eufemismo para a Lei do Velho Testamento”. [6] O caminho não será fácil, pois haverá o impedimento derivado da natureza laica do Estado; por isso, a resistência deve ser enfrentada com ânimo bélico:

Tudo que abordarei neste livro tem um único objetivo: fazer com que você compreenda, de uma vez por todas, que nós estamos em uma guerra. [7]

Como assim? Passamos do ensaio de Gary North, de 1982, para o livro de Nikolas Ferreira, de 2022, como se não tivéssemos saído da mesma página?

Pois é.

Na próxima coluna continuarei tratando dos fundamentos da Teologia do Domínio, mas já com um olho no peixe e outro no Brasil.

[1] Gênesis 1:27-28. Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2⁠ª edição, 2006, p. 17.
[2] Gary North. “The Intellectual Schizophrenia of the New Christian Right”. In: James B Jordan. The Failure of the American Baptist Culture. Christianity and Civilization. N.° 1, Spring 1982. Geneva Divinity School, p. 25. Tradução de José Luiz Rangel.
[3] Idem, p. 40, grifos meus.
[4] Idem, p. 2, grifos do autor.
[5] Idem, p. 7-8.
[6] Idem, p. 8.
[7] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Descubra como vencer a guerra cultural. São Paulo: Vida, 2022, p. 24, grifo do autor.

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