Afinidades eletivas
Uma palavra selou, como vimos na última coluna, o acordo entre o fundamentalismo religioso brasileiro e o nacionalismo cristão estadunidense: guerra. O ânimo bélico e o espírito de cruzada definem a visão do mundo que legitima um pensamento essencialmente militarizado:
“E há um exército chamado Igreja e família que está sempre orando por mim”.
“Nas páginas que se seguirão, trarei diversos conceitos e abordagens que precisam ser assimilados por todos aqueles que desejam, de fato, entrar nesta guerra para vencer”. [1]
Guerra santa — não se esqueça. Nessa circunstância marcial, os meios pouco importam se o inimigo for, não exatamente derrotado, mas finalmente destruído.
Tal disposição dicotômica ilumina o vínculo da extrema direita com o nacionalismo cristão. Em ambos os casos, o projeto político autoritário tem como pressuposto paradoxal a negação da política.
Nesse registro mental não se admite forma alguma de existência que se recuse ao destino anódino de reprodução fiel dos princípios defendidos por seu grupo.
Nesse horizonte sombrio, plúmbeo até, o outro é convertido na imagem do Mal. A fim de forjar uma sociedade harmônica, em sua República ideal, Platão pensou em expulsar os poetas da pólis, uma vez que a mimesis imitativa tende a produzir diferença em lugar de repetição.
O fundamentalismo é ainda mais radical: além de impor o ostracismo ao eventual adversário, é preciso eliminá-lo.
(Afinal, trata-se de um oponente ímpar — reconheça-se.)
O pacto
Guimarães Rosa não teria antecipado o instante agônico que vivemos, tampouco Riobaldo teria previsto a caricata onipresença do pacto que tanto o fascinou, chegando a moldar sua vida.
O nacionalismo cristão, no fundo, é antes de tudo uma forma involuntária da demonologia. Identifica-se na base do “projeto Nikolas Ferreira” a expressão de uma empresa em curso há pelo menos três décadas. Você se recorda do apelo de Michelle Bolsonaro, realizado na avenida Paulista, em 25 de fevereiro? Eis o centro de sua mensagem:
“Por um bom tempo nós fomos negligentes, sim, ao ponto de falarmos que não poderiam misturar política e religião. E o Mal tomou. O Mal ocupou espaço”. [2]
Pois bem: e se eu lhe disser que a ex-primeira dama apenas tornou público o entendimento que já se consolidou em certas denominações evangélicas? O livro de Nikolas Ferreira prenunciou o conteúdo e inclusive os termos de Michelle:
“Durante muito tempo, os cristãos recusaram-se a fazer política. O futebol, a televisão, os filmes e toda a produção cultural eram consideradas ‘coisas do capeta’. E o que o capeta fez? Tomou-os para si”. [3]
O deputado federal vai muito além de reiterar o óbvio, qual seja, um evangélico é um cidadão como qualquer outro e, nessa condição, tem direito de atuar politicamente. O mesmo deveria ser válido para o fiel de outras religiões, assim como para agnósticos e ateus.
Contudo, não é assim que se pensa no âmbito do fundamentalismo religioso, como vimos nas duas últimas colunas ao analisar um ensaio programático de Gary North. Pelo contrário, a perspectiva de Nikolas só se completa na necessária negação de direitos a todos que não professem sua doutrina estreita.
Como é possível almejar o ingresso legítimo no espaço de deliberação da ágora propondo um compasso tão intolerante como norte para a determinação de políticas públicas? Simples: porque o combate envolve o Mal! O Próprio. Ele Mesmo. Ao vivo. E a cores. Vermelhas — sobretudo. É somente com sangue nos olhos que se pode escrever o que aqui se lê:
“(…) assim como Deus utiliza pessoas para atuarem em seu Reino, o Diabo utiliza pessoas para militarem a favor de seu império.” [4]
Repare no detalhe: Deus e Diabo “utilizam pessoas”; o fraseado é idêntico, pois as artes da dissimulação são o recurso de Satanás — quem o ignora? Só o verbo muda: de um lado, o atuar divino; de outro, o militar demoníaco. Ninguém ignora o sentido pejorativo que a extrema direita atribui à palavra “militante”.
No imaginário fundamentalista, sinônimo de “ativistas da PUC”; [5] “lunáticos professores alemães”; [6] “só gente boa…”. [7] E como a sutileza nunca foi crime que se possa atribuir aos adeptos do nacionalismo cristão, o autor reafirmou a acepção dada à voz num capítulo involuntariamente divertidíssimo, em tese dedicado ao “exame” da obra de Antonio Gramsci:
“Nunca se produziu tantos militantes, e a fábrica ainda continua a todo vapor.” [8]
O método de leitura de Nikolas Ferreira é a representação máxima da “idiotia erudita”, sintoma dos tempos céleres que correm, autêntica epidemia cujo resultado conduz à dissonância cognitiva coletiva, fenômeno de delírio grupal promovido deliberadamente pelo nacionalismo cristão e aperfeiçoado pela extrema direita.
O templário pós-moderno arrolou um número nada pequeno de dados e de informações numa conexão caótica e sem qualquer critério discernível. Basta projetar um espantalho na mente do outro para que a manipulação principie.
Acredite: sem o fantasma do comunismo-Diabo-em-pessoa, uma única página do livro de Nikolas Ferreira seria ilegível. Melhor dito: provocaria frouxos de riso; seria o texto mais engraçado jamais escrito. Perto do templário de Belo Horizonte, Luciano de Samósata seria um Franz Kafka; Machado de Assis escreveria “O alienista” como se fosse um tratado científico positivista.
Maldade minha?
Você julgará.
No hilariante segundo capítulo, “A Escola de Frankfurt”, aprendemos que as reflexões de Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, entre tantos “pensadores alemães socialistas”, [9] tinham um objetivo inequívoco — quem poderia negá-lo?
“E o Maligno, por sua vez, sugere tais loucuras às cabeças fracas para a destruição da obra de Deus”. [10]
Mas isso é pouco — um quase nada. Ao mencionar a perseguição sofrida por judeus durante o Nazismo, Nikolas se superou, propiciando um momento único na história da cultura brasileira:
Não havia mais condições de o Instituto Social permanecer em qualquer parte da Europa. Então, em 1937, houve a transferência para Nova Iorque. Engraçado não terem ido para Cuba ou Coreia do Norte, não é mesmo? [11]
É mesmo chistoso — burlesco mesmo. Antes de 1 de janeiro de 1959, dia em que a Revolução Cubana triunfou, seria uma opção excêntrica instalar o Instituto no Caribe.
De igual sorte, seria prudente aguardar 1945 antes de mudar-se para a Coreia do “Norte”, que só passou a existir após o final da II Guerra. Não pretendo discutir o nível da “erudição” do jovem cruzado.
Na verdade, desejo caracterizar o projeto fundamentalista que o move. Aqui, a ignorância é funcional, indispensável, e o êxito da mensagem depende de sua expansão infinita, de modo a tornar-se “conhecimento” de milhões de seguidores.
(Seguidores e influenciadores: a razão de ser do deputado. A rima é pobre; a prática, miserável).
Nada mais sintomático do que o par de opostos que, segundo Nikolas, “sintetiza” as preocupações dos frankfurtianos:
Em resumo, ao analisar as principais teorias da Escola de Frankfurt, temos o confrontamento entre as coisas de Deus e do Maligno. [12]
Esse deslizamento sem mediações entre extremos absolutos, o sagrado e o profano, o Bem e o Mal, é a chave de compreensão do alcance da ameaça à democracia representada pela Teologia do Domínio.
O raciocínio é meridiano: se, de fato, o que está em jogo é a luta do Bem contra o Mal, não pode haver meio-termo — e é urgente tomar partido. Como escutar o outro se ele é a encarnação do Mal? Como sentar à mesa e negociar com o Diabo? Como fazer concessões quando se detém a Verdade e se conhece o alfa e o ômega de tudo que há sob o Sol?
(Se ainda fosse para disputar uma partida de xadrez: xeque-mate como uma questão de vida e de morte).
Exagero?
Talvez.
De todo modo, leiamos a conclusão do capítulo no qual se “estuda” a Escola de Frankfurt:
“Portanto, tenhamos cuidado com os falsos cristãos e os falsos profetas do caminho. O Diabo encontra neles morada. Logo, lutemos também para preservar a família, baseando-nos sempre no que dizem as Escrituras e sendo direcionados pelo Espírito Santo de Deus”. [13]
Política?
Prevejo uma objeção importante. Você certamente se perguntou: o artigo 5 da Constituição Federal assegura plena liberdade religiosa, independentemente da crença esposada; ora, então, por que eu proponho uma análise tão crítica da opção de Nikolas Ferreira? Ele não é livre para abraçar esta ou aquela religião, este ou aquele credo?
(Você tem razão e agradeço pela ressalva).
Sem dúvida, Nikolas Ferreira não deve ser questionado por suas convicções religiosas — essa é uma questão de foro íntimo.
Mas não é esse o meu ponto!
O problema é a transferência, advogada pelo nacionalismo cristão, e defendida pelo deputado federal, da fé para o campo da política, comprometendo a essência da natureza laica do Estado, consagrada no artigo 19 da Constituição Federal.
O deputado federal é o primeiro a reconhecer com lhaneza seu alvo, aliás, prioritariamente político:
Tenho um objetivo principal com este livro: fazer com que você compreenda que nós, cristãos, estamos em maioria no Brasil; por isso, precisamos estar preparados para responder àqueles que questionam a razão de nossa fé (…). O Brasil não precisa de mais cristãos, mas sim de mais pessoas que vivam o cristianismo. [14]
O segundo passo da estratégia traçada por Gary North já pode ser arriscado, pois, por fim, depois de décadas de trabalho árduo, “estamos em maioria no Brasil”. E, como se repetisse a lição do nacionalismo cristão estadunidense, mais relevante do que ser cristão é ter à disposição “pessoas que vivam o cristianismo”.
A tradução desse princípio, somente em aparência inofensivo, implica a tentativa de imposição de uma ordem política que tenha como eixo definidor não a Constituição, porém as leis do Antigo Testamento, forjando a distopia de um Brasil teonomista, intolerante e violento.
O abjeto Projeto de Lei 1904 não deve ser visto como um ato isolado, por mais absurdo que pareça.
Pelo contrário, trata-se de mais uma peça do quebra-cabeça fundamentalista que a extrema direita tenta montar.
Desvendar o propósito é uma forma de combatê-lo.
Você já sabe: continuo a faina na próxima semana.
(Ainda conto com a sua leitura?)
[1] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Descubra como vencer a guerra cultural. 2° edição. São Paulo: Editora Vida, 2023, p. 149 e p. 21.
[2] Ver a coluna “A ameaça Michelle Bolsonaro: Teologia do Domínio – I”: https://iclnoticias.com.br/ameaca-michelle-bolsonaro-teologia-do-dominio-i/
[3] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 23.
[4] Idem, p. 19.
[5] Idem, p. 144.
[6] Idem, p. 35. No caso, os pensadores da Escola de Frankfurt.
[7] Idem, p 49.
[8] Idem, p. 53.
[9] Idem, p. 31.
[10] Idem, p. 42.
[11] Idem, p 37.
[12] Idem, p 45.
[13] Idem, p. 44.
[14] Idem, p. 145.
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