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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Teologia do Domínio: Fundamentos – Projeto Nikolas Ferreira – II

 É justamente esse ânimo militarizado que define o projeto político do nacionalismo cristão
26/06/2024 | 04h58

Política

Concluí a última coluna propondo que o Projeto de Lei 1904, apresentado pelo deputado federal Sóstenes Cavalcante, e subscrito por um número infelizmente previsível de parlamentares, não pode ser considerado simples capricho de um político viciado em likes e obcecado pela visibilidade proporcionada pela controvérsia. Muito menos deve ser entendido como mero oportunismo político na véspera de eleição, numa forma irresponsável de excitar paixões por meio da indefectível pauta de costumes — essa bomba atômica que a extrema direta detona com a regularidade de relógio suíço a cada ciclo eleitoral.

(Rolex no pulso é vendaval. É vendaval.)

Pelo contrário, o Projeto de Lei 1904 é tão absurdo que precisa fazer sentido.

Como sempre, dou um passo atrás. O livro de Nikolas Ferreira, “O cristão e a política”, ilumina a aparente excentricidade:

“Quando se fala em política, é possível que você pense em questões partidárias. Mas, como você verá neste livro, a política vai muito além dessa simples acepção. A política é, acima de tudo, a ação que tem o poder de influenciar pessoas”. [1]

No “Prefácio” o tonitruante pastor Silas Malafaia tocou na mesma tecla:

“Que a partir da leitura deste livro você entenda que está sendo chamado para influenciar. Se uma única pessoa consegue arrebanhar muitas outras, imagine várias. Faça parte dessa geração audaciosa, que não tem medo de enfrentar essa guerra cultural. Não permita que essa geração seja perdida para ideologias do inferno. O Senhor lhe dará discernimento espiritual, abrirá portas à sua frente e concederá a você autoridade para vencer o Inimigo”. [2]

As duas citações são longas — reconheço e já me desculpo. No entanto, lidas em conjunto resumem o livro e, sobretudo, o “projeto Nikolas Ferreira”.

(Você deve me agradecer! Em duas passagens, condensei 150 páginas que você não precisa mais ler.)

Influenciar

Duas palavras definem a estrutura do pensamento de Nikolas Ferreira: guerra e influenciar. Vimos que, nesse registro mental agônico, a política equivale ao “poder de influenciar pessoas”. O verbo foi anunciado no “prefácio” de Malafaia. Em sua prosa, o cristão “está sendo chamado para influenciar”. Reiteração que responde à visão do mundo da dupla Silas e Nikolas: imersos numa “guerra cultural” sem trégua, cujo adversário, como duvidar?, é o Próprio Mal. Na exaltação de Malafaia e Ferreira, enfrentamos “o Diabo”, [3] “o Inimigo”, [4] “Satanás”, [5] “o Maligno”, [6] “ideologias do inferno”. [7]

A leitura de duplas de pastores como Silas e Nikolas é desconcertante. Uma obsessão atravessa sua escrita — e não se trata do amor misericordioso de Jesus Cristo. Tudo se passa como se falassem de Deus como pretexto para se regozijarem no seu oposto; somente o avesso lhes interessa, apenas o outro lado do espelho lhes atrai. Força de gravidade não prevista por Isaac Newton, a demonologia é o sol que veste os lírios dolarizados de suas contas recheadas.

Qual o sentido do verbo “influenciar” nessa autêntica distopia?

Respondo com palavras dos dois demonólogos.

O Influenciador é “um agente de conversão de mentalidades”. [8]

(Conversão: palavra-chave.)

A preocupação com a pólis é um instrumento para proselitismo religioso? Com a palavra o jovem deputado federal:

“Ficava espantado, confesso, quando pessoas aceitavam Jesus em uma palestra sobre política”. [9]

As pontas se atam: compare esse trecho com o que se encontra na penúltima página de “O cristão e a política” — e finalmente a ordem dos termos arma a equação fundamentalista; ordem essa que não pode ser alterada:

“(…) assim que você for luz, as trevas vão se dissipar. Quando você chega a qualquer lugar, as pessoas precisam ver o caráter do Reino nos seus atos e nas suas palavras; caso contrário, você não estará influenciando, mas sendo influenciado”. [10]

(Repetir sem cessar: quem veste Prada é o Diabo; quem veste Gucci é o Maligno; quem usa Rolex é o Capeta; quem tem avião particular é o Coisa Ruim.)

Negligência imprudente em relação à advertência de Jesus ao enfrentar os fariseus em sua eterna busca de criar situações embaraçosas. Eles se aproveitam do comportamento dos discípulos na hora da refeição:

“Então alguns fariseus e letrados se aproximaram de Jesus e lhe perguntaram:

— Por que teus discípulos violam a tradição dos antepassados? Pois não lavam as mãos antes de comer?”

Os quatro Evangelhos estão povoados de perguntas maliciosas dos letrados e dos fariseus. Sempre com o dedo em riste, os olhos crispados de ira, a voz estridente a um centímetro do grito, a gesticulação agressiva, quase uma bofetada, a má-fé como método hermenêutico de manipulação do repertório bíblico, e, por fim, o ódio como hálito existencial.

(Escrevo essas linhas e a imagem nítida de um pastor se desenha diante de minhas retinas tão fatigadas. O mesmo aconteceu com você?)

Não são perguntas sinceras, porém armadilhas teológicas, alçapões retóricos colocados para o tropeço de Jesus. Após responder o ardil com um questionamento honesto e assim desarmar os hipócritas, Jesus expôs o nervo do dilema:

“E chamando a multidão, disse-lhes:

— Escutai e entendei. Não contamina o homem o que entra pela boca, mas o que sai da boca: isso contamina o homem”. [11]

Alheios à admoestação, os pastores-influenciadores seguem felizes com seu fetiche.

Influenciar significa trazer a luz, dissipar a escuridão; numa palavra, converter almas para a religião professada pela dupla Malafaia e Ferreira. Por isso, o pastor-político transmite o bastão ao político-pastor, enfatizando o protagonismo que os adeptos da Teologia do Domínio atribuem ao jovem templário de Belo Horizonte na elaboração assustadoramente precisa e meticulosa do “projeto Nikolas Ferreira”. Silas Malafaia é direto:

“Nikolas é um jovem que chamou a minha atenção. Eu envelheci e, por essa razão, muitos olham para mim e pensam: ‘Ah, Pr. Silas é um homem de Deus, mas é coroa’. Nikolas é um rapaz que mostra para você e para mim, que há pessoas nesta geração que já descobriram qual é o jogo”. [12]

“Jogo”: a única palavra profética do coroa Silas que se cumprirá — e em menos de 72 horas. Caso contrário, o coroa Malafaia principiará um radical jejum de café da manhã.

(Amanhã de manhã.)

Guerra

Por que o ato de influenciar é definido como o gesto central do cristão? A resposta é chocante. Retomo o método da leitura-colagem. Prepare-se para um novo colar de citações. Silas Malafaia entrega-se à fruição de seu fetiche:

“O ser humano é um ser social, e o Diabo sabe disso. Então, só há uma maneira de você transformar este mundo: renovando seu entendimento”.

(Não resisto: interrompo a passagem para anotar minha perplexidade. Claro, você também pensou na Tese 11 de Karl Marx em suas “Teses sobre Feuerbach”: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo”).

A necessidade de mudança radical depende do diagnóstico bélico do mundo contemporâneo: “estamos em uma guerra política”. [13]

A palavra guerra rivaliza com influenciar em número de ocorrências no livro assinado por Nikolas Ferreira.

Duvida?

Por mais que eles quisessem enfraquecer a família tradicional, sabemos que essa guerra não acontecia apenas no passado, mas ocorre também atualmente. [14]

Por favor! Se a guerra não for o eterno retorno do combate do Bem contra o Mal, como justificar a subordinação da política à religião por meio do estabelecimento de uma ordem social teonomista, a fim de impor a todo e qualquer cidadão as leis do Antigo Testamento segundo a leitura manipuladora e profundamente equivocada do fundamentalismo.

— “Para, João! O delírio, agora, é seu!”

Será mesmo?

Então me diga que tipo de interpretação da Bíblia autoriza a seguinte conclusão:

A Igreja precisa parar de cair na armadilha de falsos evangelhos, sintetizados na seguinte frase: ‘Ame mais, julgue menos’. Conforme exposto em capítulos anteriores, frases de efeito escondem perigos profundos. [15]

O político-pastor prega um Evangelho pervertido: “ame sempre menos e julgue severamente o tempo todo”. Nikolas nunca perguntaria, com voz serena e sem estabelecer contato visual agressivo, a fim de não escalar a violência de uma situação-limite: “Quem de vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”. [16] Pelo contrário, Nikolas lançaria com prazer a última pedra, justamente aquela que mata.

É precisamente esse ânimo militarizado que define o projeto político do nacionalismo cristão, tal como determinado pela Teologia do Domínio. A Frente Parlamentar Evangélica desenvolve há décadas o controle progressivo, passo a passo, de comissões relevantes no Congresso Nacional de modo a impedir a votação de temas considerados polêmicos, ou de forma a incluir em pauta tópicos de interesse da bancada evangélica. Não se trata de projeção de um futuro distante, porém do cotidiano legislativo de Brasília.

Um plano de poder minucioso, principiado logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Onde estávamos que conseguimos manter os olhos bem fechados?

Plano de poder — eu disse.

“Plano de poder” é o título do livro-manifesto do bispo Edir Macedo, publicado em 2008.

Na próxima semana — você já sabe.

 

[1] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Descubra como vencer a guerra cultural. 2° edição. São Paulo: Editora Vida, 2023, p. 19, grifos meus.
[2] Silas Malafaia. “Prefácio”. In: Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 10, grifos meus.
[3] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 23.
[4] Idem, p. 24.
[5] Idem, p. 40.
[6] Idem, p. 42.
[7] Silas Malafaia. “Prefácio”. Op. cit., p. 10.
[8] Idem, p. 8.
[9] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 11.
[10] Idem, p. 148.
[11] Mateus 15. Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006. Na primeira passagem, Mateus 15:1-2; na segunda, Mateus 15:10-11; p. 2352-2353.
[12] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 9, grifos do autor.
[13] Silas Malafaia. “Prefácio”. Op. cit., p. 8. Claro, o pastor-político Malafaia alude aqui mais diretamente à conhecida passagem da Carta aos Romanos 12:2: “Não vos ajusteis a este mundo, e e sim transformai-vos com uma mentalidade nova (…)”.
[14] Nikolas Ferreira. O cristão e a política. Op. cit., p. 34.
[15] Idem, p. 143.
[16] João 8:7. Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2a edição, 2006, p. 2574.

 

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