Por André Graziano
No Brasil de 2024, pautas “em defesa da família” remetem a retrocesso. A expressão é vaga e ampla o suficiente para incluir agendas que buscam cercear direitos coletivos e individuais — e que, na prática, em nada beneficiam famílias. Sem esse mote, porém, uma pauta que ganhou força nos últimos dias é o que se pode chamar verdadeiramente de “em defesa da família”: a PEC que defende o fim da jornada de trabalho 6×1 — em que o empregado trabalha até seis dias seguidos e tem apenas uma folga na semana.
Atualmente, a legislação trabalhista brasileira permite jornada de até 44 horas semanais. Essa jornada torna-se ainda mais extenuante se forem consideradas horas extras e o tempo de deslocamento. Os paulistanos, por exemplo, levam, em média, 2h25 por dia para se deslocarem em suas atividades diárias, segundo pesquisa da Rede Nossa SP.
Entre deslocamento e jornada, cada minuto fora de casa é um minuto a menos de convívio familiar. “A escala 6×1 é pesada para administrar as coisas da minha filha”, diz a enfermeira Viviane Moreira*, de 33 anos, mãe solo de uma menina de 5 anos. “Preciso deixá-la com alguém pra poder trabalhar e não consigo resolver as coisas do dia a dia. Não consigo ir às reuniões de escola, pois sempre estou de plantão. Dificilmente consigo passear com ela, porque no dia da folga tenho casa para organizar, roupas para lavar… E ela me cobra muito.”
Como? “Ela sempre fala que trabalho demais, que queria que eu tirasse férias para poder ficar comigo. Tem dias em que ela chora quando vou trabalhar, porque quer ficar mais tempo comigo.”
Nem todo mundo tem “as mesmas 24 horas do dia”
A ideia de que todos têm as mesmas 24 horas por dia é falaciosa. A pesquisadora Michelle Prazeres, fundadora do Instituto Desacelera, explica que “em contextos desiguais, a experiência temporal das pessoas é atravessada por marcadores sociais de desigualdades”. “Não dá para a gente dizer que todo mundo tem as mesmas 24 horas. O que nos faz acreditar nisso é um discurso neoliberal de que basta se organizar, e não é verdade, porque, se bastasse se organizar, as pessoas conseguiriam priorizar o que elas acham que é importante para elas”, completa.
A impossibilidade de priorização do que é importante é a campeã dos problemas apontados por trabalhadores em escala 6×1 ouvidos pela reportagem. “Sempre tive que me sacrificar para ter uma vida social. É cansativo. Perdi alguns eventos familiares por trabalhar nessa escala”, conta a agente de viagens Liana Aurilio*, de 36 anos. “Hoje, eu só tenho o domingo para lavar roupa, arrumar minha casa, estar com a minha família e amigos. Então, fica bem difícil abraçar o mundo.”
Descanso não é luxo, é direito
“A gente tem que promover o descanso, a convivência familiar, a saúde mental e o cuidado das pessoas”, diz a pesquisadora Michelle Prazeres. É inegável que o cuidado com as pessoas é um princípio garantido pela Constituição. Logo em suas primeiras linhas, a Carta afirma que um dos fundamentos da República é “a dignidade da pessoa humana” (Art. 1º, Inciso III). O mesmo texto diz que “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (Art. 193).
“Descanso não é luxo, privilégio ou premiação. E descanso não é a pausa. Não é o momento em que você recobra o fôlego para trabalhar melhor”, completa.
Não era para “trabalhar melhor” que Leilane Reis, de 40 anos, gostaria de ter tido mais tempo com o filho, hoje com 24 anos. A garçonete sente-se culpada por não ter percebido quando o jovem, então com 13 anos, começou a usar drogas. “Eu passava o dia todo fora, chegava de madrugada. Quando eu vi, já era tarde demais”, conta. “Hoje, tenho um filho dependente químico, e nem sei como isso aconteceu, porque eu não estava presente para acompanhar.”
Leilane, que chega a trabalhar 12 horas seguidas em um restaurante, não tinha opção. “Sinto culpa, mas eu trabalhava para colocar comida na mesa.”
Também garçom, Gabriel Dantas*, de 29 anos, passava mais tempo trabalhando do que em casa durante a gestação da esposa — sua primeira filha tem dois meses. “Eu entrava às 11h e saía às 15h, voltava às 19h e ficava até meia-noite”. Essas quatro horas de intervalo pouco ajudavam: “Como morava longe, ficava o dia todo no serviço”, explica.
Nesse período, a relação com a esposa piorou. “A gente brigava muito por conta disso. Ela falava que eu não dava atenção.” Gabriel acabou sendo mandado embora do emprego por, segundo ele, ter precisado se ausentar para acompanhar a esposa em consultas médicas. Apesar da dificuldade do desemprego, a convivência familiar melhorou a partir do desligamento do trabalho: “dou muito mais atenção [à família] e fico com minha filha”.
Carga de trabalho excessiva afeta saúde mental
Pesquisa do International Stress Management Association no Brasil (ISMA-BR) mostra que 32% dos brasileiros já tiveram burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, e 72% se sentem estressados no trabalho. É o caso do operador de call center Léo Arévalo, de 39 anos. Atualmente desempregado, ele tinha uma carga horária de 6h20 por dia — incluindo três pausas (10, 20 e 10 minutos) — em escala 6×1. “Apesar de serem só 6h20 por dia, o que parece leve termina ficando pesado, pois são todos dias”, afirma. “E no único dia de folga na semana, os operadores geralmente fazem o que não conseguem fazer durante o resto da semana: descansar!”.
Segundo Léo, a jornada exaustiva contribuiu para um quadro de depressão. “Essa é a parte que mais me machuca: meu filho tem apenas 5 anos, e infelizmente já presenciou algumas das minhas crises”, conta o operador, que também lamenta o tempo de qualidade que já perdeu com a criança. Para ele, um dia a mais de folga na semana faria muita diferença: “ajudaria demais, pois o trabalhador teria um dia para descansar e outro para aproveitar junto com a família”.
PEC propõe mudança na escala
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) apresentada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP) obteve o apoio mínimo de 171 parlamentares para começar a tramitar na Câmara. Uma petição online, encabeçada pelo Movimento VAT (Vida Além do Trabalho), já reúne quase 3 milhões de assinaturas. A iniciativa é liderada por Rick Souza, vereador eleito pelo PSOL no Rio de Janeiro, que tomará posse em 2025.
Apesar de não ter o mote de uma pauta “em defesa da família”, a proposta da deputada traz quatro vezes a palavra “família” ou “familiar”. Destaca, por exemplo, que “todos necessitam ter mais tempo para a família” e que a atual carga horária, de 44 horas, “afeta negativamente a qualidade de vida dos empregados, comprometendo sua saúde, bem-estar e as relações familiares”.
Uma PEC semelhante, do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) já está em tramitação, e é possível que a proposta de Erika Hilton tramite em conjunto com a do parlamentar petista.
*Nomes fictícios
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