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Por Idiana Tomazelli e Julia Chaib

(Folhapress) — A extensão territorial das enchentes no Rio Grande do Sul e o número de pessoas afetadas fazem da tragédia gaúcha um fenômeno sem precedentes no Brasil, segundo especialistas de diferentes áreas ouvidos pela Folha.

Segundo a Defesa Civil do estado, 450 dos 497 municípios foram afetados pelas enchentes até a noite desta segunda (13), e mais de 2,1 milhões de pessoas sofrem as consequências. Dessas, 538 mil estão desalojadas e quase 80 mil estão em abrigos. A catástrofe deixou 147 mortos e 127 desaparecidos, segundo o balanço mais recente.

“Considerando o número de mortes como indicador, já teve piores. Mas pela magnitude do desastre, que afetou a capital, [causou] inundações, destruição total, e em termos de custos, eu diria que este no Rio Grande do Sul de agora é o principal. E ainda não terminou, os rios estão ainda altos, está chovendo de novo”, diz o climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Modelagem do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).

Ele destaca que dois terços do estado, incluindo a capital, Porto Alegre, sofrem com as enchentes, que afetam também a produção agropecuária — os gaúchos têm o maior cultivo de arroz no Brasil. “Vai ser talvez o [episódio] mais impactante, pelo menos nas últimas décadas”, acrescenta.

Marengo avalia que o fenômeno no Rio Grande do Sul se destaca também em relação a outros eventos ligados ao clima, como a seca no Nordeste. “São eventos diferentes. Aquilo que aconteceu no Rio Grande do Sul, foram poucos dias. A seca foi um processo de vários anos, e, pelo menos oficialmente, ninguém morreu”, pondera.

O secretário-executivo do Iclei (Governos Locais pela Sustentabilidade) da América do Sul, Rodrigo Perpétuo, também ressalta o número de municípios atingidos.

“Se comparada a tragédias similares, como a de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, como a da região serrana do Rio, essa tragédia do Rio Grande do Sul é a maior em termos da mesma ocorrência de tipologia climática, chuva extrema e inundações, e extensão territorial contínua, já que atingiu quase todo o estado”, afirma.

Tragédia impactou 242 mil domicílios

Um levantamento feito por um coletivo de cientistas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) mostra que, só na região metropolitana de Porto Alegre, 242 mil domicílios foram impactados pelas águas da enxurrada.

Os dados confirmam aquilo que já vinha sendo retratado por depoimentos e imagens dramáticas: o município de Eldorado do Sul, a 12 quilômetros de Porto Alegre, foi tomado pela enchente e teve 32 mil pessoas afetadas — o equivalente a 80% da população da cidade.

Outras localidades também foram severamente impactadas. Em Canoas, 154 mil pessoas sofrem com a tragédia (44% do total), enquanto em São Leopoldo, 84 mil (39%). A estimativa foi obtida pela Folha de S. Paulo a partir de imagens de satélite coletadas em 6 de maio, que foram cruzadas com dados do Censo Demográfico de 2022 e outros mapas disponíveis.

O ex-senador Fernando Bezerra estava em seu 11º dia no cargo de ministro da Integração Nacional (hoje Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional) quando, em 11 de janeiro de 2011, ocorreram os deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro, que mataram 918 pessoas — a catástrofe decorrente de chuvas mais letal até hoje no Brasil e que deixou marcas profundas na população.

“O número de vítimas foi muito elevado em Teresópolis. Mas a extensão territorial é menor. No Rio Grande do Sul, é uma coisa muito mais ampla. O número de atingidos, de famílias deslocadas… É um cenário realmente preocupante. E, infelizmente, eu acho que o número de vítimas lá no Rio Grande do Sul vai continuar subindo”, afirma Bezerra.

Após a tragédia no estado do Rio, o governo Dilma Rousseff (PT) propôs e o Congresso Nacional aprovou a lei que instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. O Cemaden foi criado na mesma época.

Até então, o Brasil até monitorava fenômenos de natureza meteorológica, hidrológica, agronômica, e geológica, mas não havia um órgão responsável por analisar e acompanhar esses dados de maneira integrada.

Também foi instituído o S2ID (Sistema Integrado de Informações sobre Desastres), por meio do qual os municípios gaúchos já informaram, nas últimas semanas, um prejuízo de pelo menos R$ 8 bilhões com as enchentes e danos em 92 mil moradias.

“Lamento que, apesar da aprovação da lei, não houve na sequência a mobilização de recursos. A gente fez um trabalho com o apoio das universidades para poder mapear as áreas de risco no país como um todo, tentando identificar onde deveria ser o foco das atenções e dos investimentos”, afirma o ex-ministro.

Foto: Diogo Zanatta/ ICL Noticias

Marengo, do Cemaden, avalia que a reconstrução dos municípios gaúchos terá um custo muito elevado, além de exigir melhor equipagem das equipes de defesa civil e um planejamento cuidadoso dos gestores, além de diálogo com a comunidade local.

Muitos prefeitos já discutem a possibilidade de transportar bairros inteiros para outras localidades como forma de tentar dar mais segurança à população. A medida é uma reação após cidades do Vale do Taquari terem sido assoladas por três enchentes em um período de oito meses.

“Ainda que seja [uma cidade] pequena, Muçum, por exemplo, ou Eldorado do Sul, levar para onde? Vai ser todo um debate. Imagina em cidades grandes. Eu nunca vi uma capital assim, inundada por vários dias aqui no Brasil”, diz Marengo.

Segundo o climatologista, o volume de chuvas está aumentando a cada ano na região, e as obras realizadas daqui para frente deverão levar isso em consideração.

“Realmente vai ter que se pensar em uma transformação da cidade, não só em adaptação. Vai ter que reconstruir e colocar comportas maiores para resistir ao maior volume de chuva. As bombas, por exemplo, muitas delas ficaram estragadas. Deveriam estar superprotegidas. Deu para ver aqui que cidades não estavam preparadas”, afirma.

Claudio Frischtak, ex-economista do Banco Mundial e presidente da Inter.B, consultoria especializada em infraestrutura, afirma que a necessidade de modernização das cidades para torná-las mais resilientes a esses fenômenos terá impacto direto no custo da recuperação do Rio Grande do Sul.

Ele estimou em R$ 90 bilhões a R$ 100 bilhões o investimento necessário para restabelecer o estoque de capital, num cenário em que metade das estruturas existentes tenham sido danificadas ou comprometidas pela tragédia, como pontes, estradas, redes de telecomunicação, energia e saneamento.

O número pode ser até maior, pois não considera a reconstrução de escolas, hospitais e residências.

“As exigências de resiliência da infraestrutura aumentaram. Não pode reconstruir a ponte que você reconstruiria 20 anos atrás”, diz Frischtak. “É um fenômeno que não tem precedente no país, pela extensão, pelo volume de danos, pela territorialidade”.

 

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