O governo dos Estados Unidos enviou, no fim de março, uma carta para empresas europeias com uma ordem executiva do presidente Donald Trump para proibir programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O jornal britânico Financial Times, que deu a notícia em primeira mão, aponta que o comunicado foi enviado pela embaixada americana em Paris e por outras embaixadas em diferentes países da União Europeia.
A “Certificação sobre conformidade com a legislação federal antidiscriminação aplicável”, segundo o jornal, indica que as novas regras que baniram programas de inclusão e diversidade nos EUA também deveriam ser aplicadas por empresas estrangeiras que forneçam ou prestem serviços ao governo americano.
Ainda de acordo com o Financial Times, além da carta, havia um questionário que empresas deveriam responder sobre estar ou não em conformidade com as novas políticas de Trump.
“Os contratados do Departamento de Estado devem certificar que não operam nenhum programa que promova DEI e que viole quaisquer leis antidiscriminação aplicáveis, e concordar que tal certificação é essencial para a decisão de pagamento do governo e, portanto, sujeita ao False Claims Act”.
O envio dessa carta chega em meio a tensões políticas e econômicas entre o bloco e os Estados Unidos. A carta não foi bem recebida e alguns países já reagiram.
A porta-voz da Comissão Europeia, Eva Hrnčířová disse que é preciso saber mais detalhes antes de reagir mas que salienta que a antidiscriminação e a igualdade são os principais valores do bloco.
Entre as exigências contidas na carta estariam o abandono de políticas de inclusão alinhadas com as leis da União Europeia, como a igualdade de gênero, a promoção da diversidade, inclusão de pessoas com deficiência e o combate ao racismo.
O ministro do Comércio Exterior francês, Laurent Saint-Martin, afirmou que o seu país se recusaria a fazer essas concessões e iriam pedir explicações aos Estados Unidos.
Na Bélgica, o governo criticou fortemente o que chamou de pressão de Washington. O ministro das Finanças, Jan Jambon, reforçou que os europeus têm uma “cultura de não-discriminação” que deve ser respeitada. Também disse a uma emissora de televisão: “Não temos lições a aprender com o patrão da América”.
Na Espanha, o presidente da Câmara de Barcelona anunciou que o governo municipal iria desafiar o ataque de Trump às iniciativas de DEI, que incluíram um programa cultural organizado pela cidade.
‘Anti-woke’
A ofensiva “anti-woke” começou a aparecer nas narrativas da extrema direita mundial recentemente, substituindo em certa medida a pauta anti “ideologia de gênero”.
O termo “woke”, que significa algo como despertar para o racismo estrutural, as desigualdades de gênero e para injustiças sociais e políticas, se fortaleceu entre os progressistas nos Estados Unidos após a morte de George Floyd por um policial em 2020. Rapidamente, o termo foi sequestrado e distorcido pela extrema direita, e passou a servir como um guarda-chuva para definir variadas pautas a serem combatidas.
Em 2023, um CPAC (evento político, organizado pelos ultra conservadores dos Estados Unidos que têm sido exportado para o mundo todo inclusive para o Brasil) na Hungria, exibia placas afirmando que aquela era uma zona não woke. O discurso do primeiro-ministro Viktor Orban naquele CPAC centrou-se na luta contra a “cultura woke”, principalmente direitos LGBTQ+ e sobretudo de pessoas trans, e contra a migração.
Esse CPAC é apenas um exemplo. Em todos os congressos de extrema direita que me infiltrei nos últimos anos (você pode ler mais detalhadamente sobre eles em outros textos da coluna) o combate aos direitos reprodutivos e aos direitos LGBTQ+ têm sido centrais.
Para a extrema direita brasileira não é diferente. Basta lembrarmos que a principal bandeira de Bolsonaro em sua primeira campanha à presidência era o combate à “ideologia de gênero”.
Na conferência da organização transnacional Political Network for Values que me infiltrei em Madrid em 2024, depois da eleição de Trump, os palestrantes comemoravam que o novo presidente norte-americano iria finalmente colocar em prática aquelas ideias.
E Trump dobrou a aposta. Logo no primeiro dia de mandato, assinou decretos para reduzir ou eliminar direitos de pessoas trans nos mais variados níveis, proibiu linguagem inclusiva, determinou o fim de programas de DEI e agora está tentando exportar essas medidas, pegando os países pelo bolso. Mas por que essas pautas são tão importantes para a extrema direita e tão centrais para o governo Trump?
Segundo o doutor em psicologia social, professor e coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG Marco Aurélio Máximo Prado, essa é uma pergunta complexa de responder porque remonta a elementos históricos dos regimes autoritários, mas também a uma lógica que pretende, na atualidade, retradicionalizar as relações sociais de maneira a recolocar tanto sexo como gênero em posições hierárquicas apregoadas pelas doutrinas religiosas de séculos passados.
Ele explica: “A igualdade de gênero e a diversidade sexual são, na visão do ultraconservadorismo, ameaças a determinada ordem social hierárquica das sociedades tradicionalistas. Portanto, devemos ter em mente em primeiro lugar que na história da civilização, os regimes autoritários quando incitam paixões fascistas, recorrem a pensamentos conspiratórios acerca de minorias sociais. Assim foi com gays, lésbicas e transexuais em diferentes regimes autoritários e antidemocráticos na história. Em segundo lugar, há uma construção desde os anos de 1990 advinda do pensamento católico que busca demonizar o gênero e a diversidade sexual como se estes fossem uma ameaça ao tradicional lugar do homem e da mulher na doutrina cristã”.
E continua: “Em terceiro lugar eu diria que população LGBT, população negra, população migrante e outras minorias encarnam as chamadas políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) que buscam alargar direitos democráticos. Portanto, governos como de Trump, Putin, Orbán e outros, lutam contra as políticas DEI pois de forma conspiratória atribuem a elas características de um ‘deep state’, ou seja, como se houvesse um estado profundo de dimensões e práticas destrutivas que ameaçam os governos com suas burocracias complexas.
Esta luta gera mobilização afetiva contra determinadas minorias, gera o reposicionamento de doutrinas ultraconservadoras e a autorização para atos de governantes não mais limitados pelos regimes estatais burocráticos e pelos limites constitucionais: o ódio a estas minorias gera e mobiliza muitos afetos políticos que autorizam líderes autocráticos a ir além dos limites constitucionais democráticos que como regimes políticos, no final, são os regimes de proteção de minorias e não de simples expressão de maiorias”.
O professor finaliza: “Na prática Trump está cumprindo planos de organizações cristãs como The Heritage Foundation que tem construído há décadas propostas para reordenar as políticas de estado transnacionais com relação ao fim da diversidade de gênero e sexualidade. Estamos frente a um estado de profunda violência e de erosão democrática contra aquilo que a ultradireita conservadora mundial considera ser a degradação moral da ordem democrática. Este estado de violência e caos permanente ao fim e ao cabo busca garantir a manutenção de privilégios a determinados grupos sociais frente a democratização de acesso a recursos, a poderes e políticas de reconhecimento”.
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