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José Sócrates

Em Portugal, eleito deputado à Assembleia da República em 1987. Depois secretario de estado, ministro adjunto do primeiro-ministro e ministro do Ambiente. Primeiro-ministro de 2005 até 2011. Secretário geral do Partido socialista entre 2004 e 2011. Licenciado em engenharia civil; MBA pelo ISCTE em Lisboa, mestre em Ciência Política por Sciences Po em Paris.

Um tiro na campanha

Democratas terão oportunidade de denunciar as mentiras do adversário e lembrar os erros da governação anterior
22/07/2024 | 06h24

E pronto, o Presidente desistiu da corrida, tudo volta ao início e começa agora uma nova campanha, se quisermos pôr assim as coisas. A sangria foi estancada e é tempo de construir uma agenda de campanha defendendo a governação econômica, a transição energética e uma política externa fiel às tradicionais alianças. Os democratas terão oportunidade de denunciar as mentiras do adversário e lembrar os erros da governação anterior. Uma segunda oportunidade, portanto. E, no entanto, no momento em que Joe Biden se afasta, há qualquer coisa que é imperioso dizer em seu favor. Não vi na sua atitude uma luta por glória ou posição social. Não vi ali apego ao poder. Vi, isso sim, a educação do combatente — para um homem político há sempre uma última batalha a travar. É triste, muito triste, quando a vida nos diz que há batalhas que já não podemos travar. De qualquer forma, comoveu-me profundamente ver aquele homem, aquele político que todos vimos no debate com dificuldades físicas inultrapassáveis, reservar a pouca energia que tinha para defender o filho — não, o meu filho não é um falhado, o meu filho não é um sacana. Em Portugal, o nosso presidente da República resolveu maldizer o filho perante a imprensa estrangeira só para se afastar do incomodo político de uma comissão de inquérito. Dois homens, dois países e duas culturas políticas.

E a propósito de Joe Biden, é talvez necessário fazer um breve lembrete ao Brasil. Este presidente democrata teve um papel destacado na defesa da integridade do sistema eleitoral brasileiro e no desencorajamento de qualquer aventureirismo militar. Quem esteve atento à última campanha presidencial pôde ver o governo americano lembrar a todos os que alimentavam esperanças golpistas que desta vez ninguém atenderia o telefone na embaixada americana. Espero que não venhamos a ter saudades da firmeza democrática de Joe Biden.

Isto dito, o que era na semana passada o fato da campanha passou agora a segundo plano. O tiro na campanha parece ter ficado para trás, mas o que aconteceu fez lembrar imediatamente a primeira campanha de Bolsonaro. Princípio de Tchekov: se uma arma é apresentada no início de uma peça é muito provável que venha a ser disparada antes da peça acabar. A violência retórica de Bolsonaro terminou em facada; a de Trump num tiro de fuzil. E, no entanto, apesar das semelhanças entre os dois episódios, quer-me parecer que o mais interessante entre a facada de Bolsonaro e o tiro em Trump não são as semelhanças, mas as diferenças. Primeira diferença: no caso brasileiro, as pesquisas acusaram imediatamente a comoção pública e a disparada eleitoral do candidato; no caso americano, os resultados dos inquéritos de opinião quase não mexeram. As duas pesquisas entretanto publicadas mostram uma certa estabilidade e a diferença entre candidatos é suficientemente pequena para manter o resultado da eleição em aberto. A segunda diferença é mais importante: Bolsonaro radicalizou o discurso, Trump moderou-o. A equipe da campanha americana viu imediatamente a oportunidade de combater os altos índices de rejeição pessoal do candidato e começou a falar em unir o país. Enquanto Bolsonaro reagiu incitando ao ódio, o discurso de Trump foi de apelo à unidade nacional. Eis a diferença entre a boçalidade política e a inteligência estratégica.

Este último ponto, a mudança de discurso dos republicanos, é também revelador do estado de espírito da sua campanha — não dão a vitória por adquirida. Os especialistas que conhecem a sociologia eleitoral conhecem também os indicadores de rejeição de Donald Trump e sabem perfeitamente que a corrida vai ser apertada. A análise e o cálculo politico levou a direção da campanha de Trump a rejeitar a radicalização e a usar o tema da unidade nacional como forma de atrair o centro político. Bem feito. Resta saber se a mudança é credível e convincente. Seja como for, tudo começa agora. E tudo está em aberto.

 

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