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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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Uma guerra que não dá sinais de acabar

Dia Nacional do Combate à Discriminação Racial no Brasil
03/07/2025 | 05h59
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O racismo parece daquelas guerras que a gente tem a sensação de que jamais terão um fim. Guerras que podem atenuar aqui e ali, ganhar alguns armistícios acolá, um cessar-fogo mais adiante…, mas que continuarão matando gente e quando não, produzindo milhões de feridos.

Um dia é muito pouco para combater algo mais velho que andar para frente no Brasil, mas que não encontra obstáculo para continuar fazendo suas vítimas porque conta com uma legião que minimiza suas origens, efeitos e danos — o batalhão que reduz tudo ao termo “mimimi” — e outra multidão que não se vê parte do problema, seja como alvo da discriminação ou como quem mira nesse alvo.

O dia 3 de julho foi escolhido entre todos os outros porque nesta data, em 1951, foi aprovada a Lei Afonso Arinos, ou seja, tivemos 380 anos de escravidão, estamos há 137 sem ela e, dentro destes, temos 74 anos em que o país tipifica o racismo e a discriminação como algo da esfera da punição legal.  Quem não se lembra ou nunca viu a saudosa repórter Glória Maria, relatando um caso de racismo que sofreu em um hotel e dizendo que iria acionar a “Lei Afonso Arinos”?

Meu pai tinha 10 anos quando esta lei surgiu, ou seja, cresceu com ela como referência quando o assunto era discriminação e passei a infância inteira ouvindo-o falar dela como algo a ser acessado. No entanto, a Afonso Arinos colocava o racismo no campo da contravenção penal. Racismo só passou ser efetivamente crime em 1989, com a Lei Caó — apelido do advogado e ex-deputado Carlos Alberto de Oliveira Santos, seu autor —, que o tornou inafiançável e imprescritível.

Esse breve histórico foi preciso para dizer que algo caminhou, mas falta uma distância equivalente a da Terra ao Sol para que esta questão esteja minimamente sob controle no Brasil e no mundo. Um exemplo foi a condenação de Sandra Mathias, a ex-atleta e nutricionista que chicoteou entregadores e mordeu a perna de uma mulher em 2023, no bairro de São Conrado, por racismo, injúria racial e lesão corporal. Pessoas negras sendo chicoteadas por nada em praça pública, bem ao estilo retratado pelo pintor Debret há dois séculos. Sandra foi condenada a cerca de 4 anos de reclusão, mas como é ré primária seguirá fora da prisão.

Assim como este, uma infinidade de casos faz fila na justiça e se há algo para se comemorar é isso. Muito mais gente finalmente decidiu estressar o sistema que precisa ser estressado, perturbado, incomodado diuturnamente quando a discriminação acontece.

A discriminação racial, esta vilã que se camufla, tem virado sua face cada vez com mais voracidade para o aspecto religioso em um país que possui uma parcela significativa de cidadãos e cidadãs dispostos a transformá-lo em uma nação fundamentalista cristã. E o racismo disfarçado de fé quer censurar livros, filmes, educadores, barrar a aplicação de outra lei — a 10.639 — que obriga o estudo da história negra e africana nas escolas.

Não há estudante que tenha feito um ensino médio minimamente razoável, que em algum momento não tenha estudado a Europa e a influência do cristianismo. Não há notícia de nenhum pai ou mãe perturbando a direção da escola por doutrinação religiosa por isso, mas basta o professor citar a religiosidade não cristã de algum país africano e o caos começa a acontecer.

Aqui estão pequenas pinceladas, gotículas em um mar de problemas causados pelo racismo contra o qual o dia de hoje pretende lançar reflexões. Nesta guerra, muitas batalhas já foram vencidas. O que ainda falta vai depender da quantidade e da qualidade das tropas formadas por quem se alista nesta luta. Não há como vencê-la sem um exército poderoso. A convocação é para todos e todas, sendo pessoas negras ou não, pois as consequências de uma sociedade segregada são nefastas no curto, no médio e no longo prazo indistintamente… mesmo para os brancos, que tem na cor da pele uma vantagem competitiva herdada e cultivada por séculos.

Curiosamente, dia três de julho também é o dia de São Tomé, aquele que precisou ver para crer. A conexão com o tema do dia é que a persistência do racismo em um país que se autodeclara 56% negro, é coisa que São Tomé mesmo vendo não acreditaria.

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