Esta foi uma daquelas extraordinárias noites eleitorais em que o vencedor apareceu, festejou, e entrou imediatamente na noite escura e longa do esquecimento politico. Nos breves minutos que esteve em palco, Ricardo Nunes ainda teve tempo para declarar o que provavelmente terá sido a coisa mais inteligente que disse nos últimos meses — “esta foi provavelmente a minha ultima campanha”. O prefeito deu tudo ao aparelho e o aparelho deu tudo ao candidato, porque ambos sabiam que, fora do aparelho, pouco valiam. No entanto, como em todas as vitórias nestas circunstâncias, o destino dos lideres é fugaz — mal se apagam a luzes, o aparelho retoma o comando: é já hora de pensar na próxima campanha presidencial.
Quanto ao vencido, esse continuará em palco. Tem juventude, energia e uma invulgar inteligência política que exibiu vivamente nos debates, nas entrevistas e nos diálogos com os eleitores. Para além disso tem coragem. Não depende de ninguém e não está nas mãos de ninguém. Sim, foi derrotado. Sim, esta é segunda a vez que é derrotado. E, no entanto, nenhum analista lúcido deixará de considerar esta extraordinária circunstância — para o vencedor parece ser o fim de linha; para o vencido há muito caminho pela frente. A partir de agora, o vencido, terá de lidar com o desconforto interno de quem sente que foi derrotado por alguém que lhe fica aquém em termos de qualidades politicas. Mas é a vida, faz parte do processo de crescimento. Depois, terá ainda que enfrentar os ataques que virão principalmente do seu campo político (faz parte das regras destes fenômenos ganhar o respeito dos opositores e o ciúme dos rivais). As críticas já começaram vindas dos chamados “condutores dos banco de trás”, daqueles que estão sempre disponíveis parar ensinar como é que tudo deveria ter sido feito — e não foi, porque se fossem eles a fazer, a vitória estava garantida. Há quem dedique a sua vida a explicar como os carros funcionam, e há quem queira conduzir os carros — a política é para estes últimos, os que querem conduzir. Guilherme Boulos é um homem de ação e confirmou nesta campanha que é um dos rostos mais importantes da esquerda brasileira.
Dois outros tópicos de análise. O primeiro tem a ver com conversa do “radical”. Bom, para começar, radical, radical, é a situação social no Brasil. Radical, é a injusta distribuição de recursos e de oportunidades. Radical é ser trabalhador e não ter teto — não é o movimento social que reclama habitação para eles que é radical. Tenho a maior admiração por quem, perante as injustiças, não se perguntou se “ficaria bem” na sua imagem e na sua futura carreira politica defender os pobres. Guilherme Boulos não cultivou a indiferença, essa maldita chaga social a que Gramsci chamava o “peso morto da história”. Não, ele levantou-se e agiu. Esse percurso pesou na escolha? Talvez. Mas é assim a democracia. Pela minha parte, gostei que ele tivesse referido esse período da sua vida politica com orgulho, afirmando de seguida aquilo que todos sabemos — as pessoas crescem, os políticos aprendem com a vida a valorizar o compromisso, e os cargos que ocupamos ensinam-nos a responsabilidade de procurar soluções reformistas onde todos se possam rever. Ele quis ser o prefeito de todos os paulistanos, não um chefe de partido. É esse caminho que certamente continuará a fazer.
O outro ponto de análise tem que ver com o debate que se instalou na esquerda a propósito das políticas sociais versus políticas de identidade. Nada me choca mais, é verdade, que um certo “politicamente correto” da esquerda sobre a linguagem neutra. Nalguns casos é absolutamente insuportável. Mas nenhumas das grandes mudanças sociais das últimas décadas a favor dos direitos das mulheres, das minorias sexuais ou do combate ao racismo teria tido sucesso sem a esquerda. Se não fosse a esquerda a liderar este combate, quem seria? A direita? Francamente, quando ouço para aí falar de “diálogo com a periferia” não percebo em que é que isso possa comprometer uma esquerda comprometida com a batalha contra todo o tipo de discriminações. Enfim, o que vejo aqui é análise política usada como pretexto para ajustes de contas doutrinários que, por sua vez, mal disfarçam lutas de poder interno. Enfim, um clássico.
Bem vistas as coisas, o que se passou é uma coisa vulgar em democracias: o povo não quis mudar, não quis arriscar e quis dar mais uma oportunidade a quem está. Veremos se tinha boas razões para o fazer. Veremos. No entanto, nada disso autoriza, do meu ponto de vista, as análises politicas que para aí vejo que, de tão nacionais, parecem ter esquecido o básico: estas eleições foram para escolher prefeitos. E a mim parece-me um sinal de maturidade democrática saber distinguir — uma coisa são eleições locais, outra são eleições nacionais. Parece-me muito precipitado falar de Lula e de Bolsonaro, ainda não chegou o momento. Fiquemo-nos, portanto, por aqui: Nunes e Boulos — um, vencedor, abandona as lides; outro, vencido, encontra nas marcas da batalha a legitimidade para continuar.
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