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‘Zé’: um retrato da tortura do medo e do silêncio na ditadura

Filme sobre militante da Ação Popular, José Carlos Novaes, chega aos cinemas após 20 anos de produção; confira entrevista com o diretor
02/09/2024 | 11h30

Por Matheus Pichonelli *

”, filme do diretor mineiro Rafael Conde que estreou na quinta-feira (29) nos cinemas, é uma espécie de antítese de obras que retratam o período da ditadura.

Se em “O que é isso companheiro”, de Bruno Barreto, ou “Marighella”, de Wagner Moura, a linguagem é a ação, em “Zé” a tensão está na espera.

Cenas de pancadaria, tiro, porrada e bomba são raras. E faz sentido que seja assim.

O filme retrata a história do militante mineiro José Carlos Novaes da Mata Machado, um estudante universitário que liderou a Ação Popular Marxista-Leninista, grupo de resistência à ditadura (1964–1985). Criada em 1962, a partir da atuação da Juventude Universitária Católica, a AP atuava na conscientização das classes operárias e trabalhadores rurais — e não exatamente na luta armada. Isso envolvia trabalhos de alfabetização e educação em diversas localidades, sobretudo no Nordeste.

Interpretado por Caio Horowicz, o Zé que aparece na tela, portanto, não é o militante que troca tiros com os militares e sequestra embaixadores — como os colegas do MR 8, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, retratados em “O que é isso companheiro”.

“Zé” é um filme sobre a espera.

Ou melhor: da tortura da espera, em um contexto em que os militantes perdiam contato com pais e amigos, aguardavam informações escassas para definir estratégias de luta e, no meio disso, se apaixonaram e formavam as próprias famílias. Tudo na clandestinidade.

Essa escolha, segundo o diretor, tem a ver com uma das características dos períodos ditatoriais: a imposição do silêncio: “Esse não poder falar é um tema recorrente entre pessoas que viveram aquela época. A violência nesses momentos de censura vai além da questão física, objetivada, com soco, pancadaria e métodos de tortura. Está também na necessidade de falar baixo e no medo constante.”

“Na construção da dramaturgia, a opção foi essa: falar da vida íntima dessas pessoas e de como isso impactava as ações cotidianas”, diz o cineasta, professor da Escola de Belas Artes da UFMG e ex-integrante de movimentos estudantis e de cineclubismo de BH durante o processo de reabertura.

“Eu quis registrar o desespero de não ter informação. Hoje, com o celular, isso é impensável. Mas o bloqueio ao acesso à informação na época impedia os militantes de terem notícias do mundo, dos pais, amigos e irmãos. E a comunicação era feita por carta, dentro de livros. Filmamos muitas cenas assim, mas poucas ficaram na edição.”

Zé

Cena de “Zé”, filme de Rafael Conde (Foto: Divulgação)

Conde mergulhou na história do personagem há cerca de 20 anos, quando ganhou de amigos o livro-reportagem “Zé”, de Samarone Lima.

“Era uma história muito contada no meio universitário. O Zé vinha de uma família tradicional, de intelectuais. E muitas pessoas do movimento ‘caíam’ por causa dele. E isso sempre foi meio esquisito. Até que um cunhado, irmão da mulher dele, bebe e confessa a ela que era informante. Depois disso ele grava uma entrevista ao projeto ‘Tortura Nunca Mais’ e conta tudo. Mas essa história não é muito comentada, porque a família era muito católica, muito conhecida, e a situação toda é muito dolorosa.”

Zé era filho do jurista Edgar Godoy da Mata Machado, professor de Direito e deputado que peitou a ditadura.

Uma das cenas acompanha o embate entre Mata Machado e o filho, seu aluno. Um defendia a volta à legalidade. Outro, a ação via clandestinidade.

O filme de Rafael Conde levou duas décadas para ficar pronto. Atravessou os governos Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. No período, o diretor viu tomarem forma os discursos de glorificação da ditadura, resultado, segundo ele, do silenciamento de histórias como a de Zé.

Por coincidência, o longa estreou um dia antes da retomada, pelo Ministério dos Direitos Humanos, dos trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.

“O filme sai agora neste momento em que a gente volta a falar sobre a ditadura. E ajuda a desmistificar o que as pessoas que não conheceram o período pensam sobre os militantes da época, retratados (pela extrema direita) como monstros, terroristas, infiltrados, perigosos. Mas são pessoas comuns, que tinham suas famílias.”

Nessas duas décadas, Conde acompanhou na universidade as inquietações do movimento estudantil e os embates com a Polícia Militar. “Eu via aquela inquietação e pensava: o Zé tinha a idade desses meninos… e os filmes sobre ditadura são sempre representados por atores adultos, que falam como adultos. E eu quis dar essa aplainada com atores jovens”, diz.

Um dos pontos de destaque na obra é justamente a construção do relacionamento entre Zé e a também militante Bete, interpretada pela jovem Eduarda Fernandes.

Entre planos de ação e sonhos de mudar o mundo, eles se apaixonam e têm dois filhos, o que altera toda a rota da própria militância.

“Essa característica é típica da juventude e está presente em outros filmes. É uma mistura de sonho, de medo e de paixão. É uma época em que não se tem muita noção do que pode acontecer.”

Sem risco de spoiler, o filme faz justiça a um personagem que não sobreviveu para testemunhar o fim do regime.

Zé Carlos foi capturado pelo Dops, torturado e morto pela ditadura em Recife em outubro de 1973. Tinha 27 anos.

* Matheus Pichonelli é jornalista, roteirista do ICL Notícias, e autor da newsletter https://matheuspichonelli.substack.com/ 

 

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