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Respeita meu Axé: perfis nas redes usam humor para falar das religiões afro-brasileiras

Linguagem descontraída busca alcançar um público mais amplo e quebrar estigmas
21/04/2024 | 23h20

Por Cristiana Souza*

O preconceito contra as religiões de matriz africana faz com que, desde muito tempo, essas manifestações de fé sejam encaradas de forma distorcida, como algo ligado a forças malignas, diabólicas e obscurantistas.

Quem pratica a Umbanda ou o Candomblé, no entanto, sabe que os preceitos nada têm a ver com isso. Para combater o estigma, surgiram nas redes sociais perfis que apresentam as religiões afro de uma forma humorada e com narrativas leves.

Perfis como “Macumbeira Online” @macumbeiraonline, “Challenge Religioso” @challenge_religioso, “Zeus” @oficialzeusmc, “Macumbeiros Descontraídos” @macumbeirosdescontraidos e “Umbanda Comedy Show” @umbandacomedy têm se destacado ao empregar memes e vídeos divertidos para transmitir conhecimentos e promover a inclusão.

O ICL Notícias conversou com pessoas que administram perfis desse tipo para entender melhor como o humor pode ser um mecanismo eficaz na quebra de estereótipos.

“Com humor, converti muita gente”

Tatiana Rezende Lopes, criadora do Macumbeira Online, falou sobre o uso do humor para desmistificar as práticas religiosas.

Como filha de santo na Umbanda e médium, ela criou a página há um ano, onde publica conteúdos que buscam transmitir informações sobre as religiões de forma descontraída e acessível. Ao ICL Notícias, ela falou sobre a importância dessa abordagem nas redes sociais.

“As pessoas precisavam entender que não se trata de culto a demônios”, explica Tatiana. “Com humor, busquei quebrar estigmas que muitas pessoas tinham, como tomar banho de folhas, sal grosso ou pipoca. Acredito que, com todo esse humor, converti muita gente”.

Humor: um dos memes publicados no perfil Macumbeira Online

Humor: um dos memes publicados no perfil Macumbeira Online

Para Tatiana, apresentar esses ensinamentos de forma leve é crucial. “Acredito na máxima importância de passar mais informações sobre as religiões de matriz africana”, diz ela.

“Não possuímos uma bíblia, toda a ritualística é e foi passada pelo pai e mãe de santo. Repassar nosso processo é mostrar para nossa sociedade o que um dia foi tratado como negativo. A vida é um grande processo de aprendizado e precisamos sorrir mais”.

Tatiana Lopes, filha de Oxumarê e Oxum. Frequenta o Centro Umbandista Paz e Justiça em Salvador–BA. Foto: Instagram

Ela acredita que a descontração e linguagem acessível têm colaborado para a aceitação dessas religiões na sociedade.

“Acredito que converti muitas pessoas com toda essa descontração”, afirma ela. “Gente que antes tinham medo, hoje me pergunta para que serve determinado banho, o que elas podem fazer para melhorar sua vida amorosa, profissional, financeira. É necessário ter fé e perseverar, acreditar que tudo vai mudar”.

O meme como estratégia

Giovanna Estevam, responsável pelo perfil “Challenge Religioso”, também ressaltou ao ICL Notícias a importância desse tipo de iniciativa: “Nada na religião é brincadeira, tudo é muito sério. Mas o meme é uma estratégia de engajamento para desmistificar preconceitos.”

Desde março de 2020, a médium busca desmistificar a religião da Umbanda por meio de conteúdos engraçados e informativos.

“Sempre tive vontade de levar o sagrado ao mundo, para todas as pessoas conhecerem um pouco mais da religião e tirarem a má impressão que têm. E, lá na frente, poder continuar o legado da minha vó [Marlene Esparça] e ensinamentos da minha tia e tio/avô.”

A idealizadora da página — que divulga mais de 20 outros perfis de Candomblé, Umbanda e Quimbanda — diz ser agradecida aos Orixás, aos guias e a Deus pelo sucesso de sua conta criada e pela ajuda espiritual oferecida aos que precisam.

“Costumamos falar que a Umbanda é um hospital que ajuda as pessoas sem pedir nada em troca. (…) Seja problema emocional, físico ou material, e fazemos tudo isso com a fé e permissão de Deus”, explica.

Criadora do perfil Challenge Religioso. Frequenta a Casa de Caridade Umbandista Mestre Zé Pelintra e Exu 7 Catacumbas, em Vila Brasilina, São Paulo. Foto: Arquivo Pessoal

Giovanna diz que combina a informação e o humor “fazendo brincadeiras para as pessoas serem atraídas pelos vídeos e conhecerem a religião”. A filha de Oxum e Xangô enfatiza que a Umbanda não tem relação com o mal ou com o diabo, mas sim com entidades que oferecem auxílio e orientação.

“Ver que aquilo [a religião] não mexe com o Diabo, que são entidades que já tiveram vida e ajudam a todos nós. Tanto que tem pessoas que fazem das entidades, pai e mãe. Eu mesma, tenho Zé Pilintra [entidade espiritual] como pai.”

Reels colaborativo criado pelos perfis Challenge Religioso e Lara de Oxalá. Foto: Instagram

“Macumbeiros descontraídos”

Outro perfil que segue uma abordagem semelhante é o “Macumbeiros Descontraídos”. Em uma das postagens trata do costume dos irmãos de santo brincarem com as características marcantes herdadas de seu orixá de cabeça (entidade que guia sua vida).

Em um dos memes, falam dos filhos de Oxum, Orixá das águas doces. Dentre as características marcantes dessa Orixá estão a vaidade e a sensibilidade, sendo os filhos de Oxum frequentemente descritos como chorões.

Postagem do Instagram “Macumbeiros Descontraídos”

A gargalhada na Umbanda

Essas iniciativas contrariam a ideia de que religião e humor não combinam. “A gargalhada tem Axé” é o que norteia o perfil criado de Stand-up Comedy que tem rodado Rio de Janeiro e São Paulo para falar sobre suas vivências como frequentadores da Umbanda de forma ao mesmo tempo engraçada e respeitosa.

O grupo é formado por quatro comediantes umbandistas: Deco Machado, Renato Kuni, Rogério Berê e André Smith. No perfil “Umbanda Comedy”, que conta com 188 mil seguidores, são postados diversos cortes de shows realizados pelos integrantes.

A plateia interage durante o show escrevendo perguntas hipotéticas para os comediantes utilizarem a criatividade e abordarem o assunto pedido, além de criarem paródias de ritmos musicais como funk, gospel, rock, entre outros.

Cartaz de um dos shows solos de um integrante do grupo Umbanda Comedy

Cartaz de um dos shows solos de um integrante do grupo Umbanda Comedy

Em vídeo publicado no dia 26 de fevereiro deste ano, que atingiu mais de 33 mil curtidas, o quarteto faz uma releitura divertida da conhecida música“ Vira-Vira” do grupo que foi sucesso do rock cômico nos anos 90, Mamonas Assassinas.

O reels começa com o humorista Rogerio brincando que a letra feita “veio direto do Dinho”, falecido vocalista do grupo, fazendo referência à incorporação do espírito dele.

Reels: paródia da música “Vira-Vira”

“Fui convidado pra uma tal de macumba

Lá me disseram que eu iria incorporar 

Depois de uma semana eu voltei para casa com o pé todo sujo e não podia nem lavar

Roda, Roda, Vira

Solta, Roda, Vem

7 dias na macumba não incorporei ninguém

Roda, Roda,vira

Solta, Roda, vem

neste raio de macumba

já fiz despacho na calunga 

e não incorporei ninguém“

[Paródia da música “Vira-Vira]

Humor e religião no trap

Além de perfis que utilizam humor aliado à religião, esse tipo de abordagem ganha espaço na música.

Nas redes sociais, o rapper e compositor Zeus tem levado por meio de suas letras — no estilo trap, um subgênero do rap — ensinamentos de forma descontraída sobre as religiões afro-brasileiras, atingindo notoriedade na internet.

Com temáticas que abrangem saberes tradicionais, Zeus dá explicações de forma simples em suas músicas sobre entidades como Caboclo, Iemanjá, Pomba Gira, Exu, além de crenças como a projeção astral e incorporação.

INCORPORAÇÃO NA UMBANDA 📿 #humor #trap

Reels do Rapper Zeus “Incorporação na Umbanda”. Foto: Instagram

Quanto a essa última crença, ele ensina em música como acontece a incorporação.

“Tá e como é que eu sei

se eu realmente tô incorporado

com o tempo tu vai aprimorando a tua percepção

sem se afobar e com muito cuidado

para não cair numa mistificação

e a incorporação é só um dos diversos tipos de mediunidade”. 

[Trecho da letra “Incorporação na Umbanda”]

Ferramenta contra “a demonização dos terreiros”

As religiões afro-brasileiras têm um histórico de perseguição. Ana Paula Mendes de Miranda, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pesquisadora da violência contra os terreiros de Candomblé, conta sobre a estigmatização das práticas religiosas afro-brasileiras.

Segundo Ana Paula, a perseguição histórica enfrentada pelos praticantes das religiões afro-brasileiras tem início no século 19, quando essas tradições foram alvo de discriminação oficial.

Mesmo após a liberdade religiosa garantida pela Constituição de 1891, segundo a antropóloga, os terreiros de Candomblé e Umbanda continuaram sendo perseguidos.

Ela acrescenta que essa perseguição só começou a diminuir “a partir dos anos 70” e que a “liberdade de culto só foi garantida, efetivamente, com a Constituição de 1988.”

Além disso, a especialista lembra que as crenças de raízes africanas têm sido alvo de violências “desde 2008, quando começaram a ser explicitamente atacadas por parte de pastores evangélicos.”

“A demonização dos terreiros por algumas comunidades evangélicas é uma ‘estratégia antiga’ que tem se mostrado eficaz ao longo do tempo”, afirma especialista em Justiça e reconhecimento dos direitos dos terreiros.

Casos de discriminação religiosa proferidos por evangélicos têm sido observados ao longo dos anos, incluindo invasões a terreiros e discursos de ódio na internet.

Diante disso, a pesquisadora exalta a função do humor no combate ao preconceito.

“O uso do humor é uma estratégia interessante para desmontar ideias construídas pela Igreja Católica, como a demonização dos terreiros. As pessoas olham para os terreiros, olham para os religiosos e veem um demônio, mas não existe essa entidade no Candomblé”, afirma.

A luta contra a discriminação religiosa ainda está longe de um desfecho, porém, iniciativas que combatem esse ódio têm colaborado para mudar a percepção negativa das religiões afro-brasileiras, promovendo maior aceitação e respeito.

Provam diariamente que a abordagem séria da crença pode ser conduzida com leveza e humor. A risada é cheia de Axé.

*Estagiária sob supervisão de Chico Alves

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