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Leonardo Boff

Leonardo Boff escreveu: A busca da justa medida (I e II), Vozes 2023; A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual, Vozes 2014; Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz, Vozes 2009.

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O necessário diálogo inter-religioso

O fundamentalismo e o terrorismo atuais se enraízam profundamente em convicções religiosas
09/04/2024 | 15h06

O diálogo entre as religiões significa a convivência pacífica entre os mais diversos caminhos espirituais; sua contribuição é fundamental para a paz entre os diversos povos habitando a mesma Casa Comum.

O diálogo inter-religioso é uma das demandas mais urgentes nesta fase planetária da humanidade. O fundamentalismo e o terrorismo atuais se enraízam profundamente em convicções religiosas mais do que em ideologias. Só motivações que se fundam num sentido radical que transcende os sentidos históricos imediatos sustentam a coragem de pessoas, dispostas a se sacrificarem e a virarem pessoas-bombas para destruir outros, tidos como inimigos. Esse sentido é, normalmente, produzido pelas religiões.

Transfundo religioso dos conflitos atuais

Atrás dos principais conflitos do final do século 20 e dos inícios do século 21 possuem um transfundo religioso, assim, no passado na Irlanda, em Kosovo, na Kachemira; e atualmente na Síria, no Afeganistão, no Congo e hoje de forma violenta entre a Ucrânia e a Rússia, o ato terrorista do Hamas de Gaza em 7 de outubro de 2024 e a retaliação desproporcionao por parte do Estado de Israel, chefiado por um primeiro-ministro de extrema-direita, desferida contra os palestinos da Faixa de Gaza.

Não sem razão escreveu Samuel P. Huntington, um dos observadores mais atentos do processo de globalização, em seu discutido livro “O choque de civilizações” (Objetiva): “No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força central que motiva e mobiliza as pessoas… O que em última análise conta para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico; mas aquilo que com que as pessoas se identificam são as convicções religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas combatem e até estão dispostas a dar a sua vida”(p. 79).

Efetivamente, não obstante o processo de secularização e do eclipse do sagrado com a introdução da razão crítica a partir do Iluminismo do século 18, a religião sobreviveu a todos os ataques. Ao contrário, as últimas décadas assistiram a uma volta poderosa do fator religioso e místico em todas as sociedades mundiais, volta propiciada principalmente pelos filhos e filhas dos mestres da suspeita e da crítica devastadora da religião como Marx, Freud, Nietzsche, Popper e outros.

A religião é a cosmovisão comum da maioria da humanidade. Nela encontra orientação para a vida e dela deriva atitudes éticas. Bem formulou Ernst Bloch, o filósofo marxista que resgatou o sentido profundo do fator religioso, bem sentenciou: “onde há religião, ai há esperança”. E onde há esperança surgem incontáveis razões para lutar, para sonhar, para projetar utopias salvacionistas e dar sentido à vida e à história.

Pluralismo religioso de fato e de direito

Então, há se partir do fato incisivo da religião, melhor, do pluralismo religioso. Há tantas religiões quantas culturas há. Quando uma cultura produz sua religião é sinal de que chegou ao seu amadurecimento. Ela ajuda a conferir a identidade e a coesão cultural.

Todas as religiões trabalham com um sentido último e com valores que orientam a vida. Por isso possuem um alto valor humanizador e civilizatório. Mas importa não desconhecer que elas correm o risco permanente de fundamentalismo, de se imaginarem absolutas e as melhores. Esta atitude está a um passo da guerra religiosa, coisa que ocorre com frequência na história. As religiões precisam, então, de se reconhecerem mutuamente, de entrar em diálogo e de buscarem convergências mínimas que lhes permitem conviver pacificamente. Eis a importância do diálogo entre todas.

Antes de mais nada importa reconhecer o pluralismo religioso como “de fato” e como “de direito”. O fato é inegável, basta constatá-lo. A questão é sua legitimação de direito. Neste ponto há divergências profundas, especialmente, na Igreja hierárquica católica, em outras igrejas cristãs, em certas tendências do islamismo e de outras religiões. Aqui algumas igrejas cristãs mostram seu fundamentalismo explícito, pois, julgam-se as portadoras exclusivas da revelação divina e as únicas herdeiras da gesta salvadora de Deus na história pela vida, morte e ressurreição de Jesus.

Mas não se pode negar a pluralidade. Por isso importa defender o direito a esta pluralidade de fato. Em primeiro por uma razão interna à própria religião. Nenhuma religião pode pretender enquadrar Deus, o mistério, a fonte originária de todo ser ou qualquer nome que se queira dar à suprema realidade, nas malhas de seu discurso e de seus ritos. Se assim fora, Deus seria um pedaço do mundo, na realidade, um ídolo. Perderia totalmente sua transcendência a qualquer objetivação humana.

Ele está sempre para além do que pudermos representá-lo. Então, há espaço para outras expressões e outras formas de celebrá-lo que não seja exclusivamente através desta igreja ou desta religião concreta. Como dizia um pensador franciscano do século 13, Duns Scotu: “Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. Ele não está na ordem das coisas, mas do fundamento de sua existência e da permanência nessa existência.

Assim, por exemplo, as religiões de matriz africana presentes no Brasil, não são cartesianas e ocidentais. Possuem outra forma própria de sentir, de interpretar e viver o sagrado. São religiões profundamente ecológicas, ligadas às energias da natureza e do cosmos. O próprio “axé” é uma energia cósmica, presente em todos os seres e mais fortemente em pessoas carismáticas como pais e mães de santo. Seu modo de cultivar o sagrado deve ser acolhido como uma das formas legítimas de caminhar para Deus (Olorum) e sermos visitados pelas divindades.

O equívoco da pretensão de exclusividade

Na verdade, não é o pluralismo religioso que deve ser questionado mas a pretensão de uma das religiões de se considerar a única verdadeira. Nem vale o sofisma: se há um só Deus, deve haver uma só religião. Ora, a natureza de Deus e a natureza da religião são profundamente distintas. A natureza de Deus é o mistério, o inefável, o infinito. A natureza da religião é o limitado, o histórico, o finito, aquilo que foi criado pela cultura humana. Então, Deus nunca poderá ser identificado com alguma doutrina. Ele está dentro e também fora e para além, pois esta é a sua natureza. Ademais, se aceitarmos que Deus é diversidade de divinas pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo em permanente relação de amor e de diálogo, isso fornece um fundamento maior para justificar a diversidade religiosa.

Dai é importante reconhecermos o fato das muitas religiões e igrejas, para que cada uma delas possa dizer algo do inefável e revele dimensões que a outra não pode expressar. Todas juntas sinfonicamente acenam para a realidade sagrada e todas se calam, reverentes, diante dela porque ela as desborda por todas as formas e lados.

Esta última reflexão nos obriga a introduzir uma distinção de fundamental importância para que o diálogo inter-religioso seja possível e ganhe alguma eficácia: a distinção entre espiritualidade e religião.

Distinção entre religião e espiritualidade

Por espiritualidade entendemos o encontro com o mistério do mundo, com o inefável, com o Tao, com Olorum, com o Numinoso, com aquilo que se convencionou chamar de Deus (embora haja tradições que não se sintam bem, como o budismo, que é antes uma sabedoria que uma religião). Esse encontro não é inventado nem imposto. Ele ocorre simplesmente, como uma experiência originária. O ser humano é um ser de abertura ao outro, ao mundo e ao infinito. Ele simplesmente é um sistema aberto e dialogante.

Ele coloca questões radicais sobre sua origem e destino, sobre o sentido do universo, sobre o significado de sua vida, de seu sofrimento e de sua morte. Ele é um grito lançado ao infinito. Experimentar esta realidade perfaz aquilo que chamamos espírito. É um modo de ser, de relacionar-se, de sentir-se inserido num Todo maior. Cientistas contemporâneos chamam-na de “espiritualidade natural” por pertencer à natureza humana (Cf. Steven Rockefeller, “Spiritual democracy and our schools”).

Esta espiritualidade natural, não é monopólio das religiões ou de algum caminho espiritual. Ele é anterior a tudo. Possui o mesmo direito de cidadania antropológica como a libido, a vontade, a inteligência e a sensibilidade. Assim como existe a inteligência intelectual e a inteligência emocional, existe também a inteligência espiritual pela qual captamos, além dos fatos e das emoções, os contextos globais de nossa vida, totalidades significativas, valores e nossa inserção num Todo maior.

É próprio da espiritualidade captar visões globais e se orientar por um sentido transcendental. Neurólogos e neurolinguistas detectaram uma base empírica desta inteligência, na biologia dos neurônios. Alguns neurocientistas e o psiquiatra I. Marshall e sua esposa física quântica, Danah Zohar entre outros (Cf. D. Zohar, QS, “Inteligência espiritual”, Record) chegam a falar do “ponto Deus” no cérebro. Numa perspectiva evolucionária, quer dizer, o universo evoluiu até a um ponto de produzir um ser de inteligência que dispõe de uma capacidade de perceber, a partir de certa aceleração de neurônios, o mistério deste universo, Mistério que penetra e resplende em tudo.

Esse “ponto Deus” representa uma vantagem evolutiva da espécie homo, presente em todos os representantes. Logicamente, Deus não está apenas presente num ponto do cérebro, mas em todo o ser humano e cada uma de suas dimensões. Mas é a partir de um ponto dos neurônios que ele se deixa perceber fenomenologicamente.

Esta experiência espiritual está na base de todas as religiões e caminhos espirituais. A forma como esta experiência se expressou historicamente varia consoante as culturas, seja na Índia, na China, no Tibet, no Japão, entre os Maias, Aztecas, Tupi-Guarani, Yanomani entre outros. As religiões são os construtos culturais, os mais diversos, tentativas de expressar numa doutrina, numa celebração, num texto sagrado, um código ético desta espiritualidade originária.

As religiões são diferentes e muitas, mas a espiritualidade originária é a mesma. É ela que permite o entendimento e o diálogo entre as religiões, porque todas bebem da mesma fonte de águas cristalinas: a espiritualidade natural. As religiões são canalizações desta fonte originária.

Importância das religiões para a paz mundial

Se tal é a importância das religiões na configuração da humanidade concreta, então são decisivas para a convivência e a paz mundial. Por isso entendemos a relevância que o Papa Francisco dá a elas nas duas encíclicas ecológicas “Laudato Sì: sobre o cuidadoda Casa Comum” (2015) e na “Fratelli tutti” (2020) no sentido da salvaguarda da vida e do futuro da Mãe Terra. Muito conhecida e sempre citada é a tese fundamental do teólogo alemão Hans Küng, recentemente falecido, o melhor estudioso das religiões na fase planetária, com a qual concordamos: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões” (Religiões do mundo).

O diálogo entre as religiões segue um caminho singular. Não pode começar pela discussão das doutrinas que logo geram discussões intermináveis e divisões, mas pela conscientização da espiritualidade que une a todas. E isso se faz pela oração ou meditação. O diálogo começa quando todos começam a rezar juntos ou a meditar. Rezar, meditar é mergulhar na espiritualidade. Aí as pessoas começam a se conhecer, a descobrir a bondade de um e de outro, a piedade, a reverência e a busca sincera do mistério de todas as coisas, de “Deus”.

As doutrinas ficam relativizadas em nome da vida concreta, inspirada pela respectiva religião. Logicamente, tudo o que é sadio pode ficar doente. Todas as religiões podem incorporar desvios, endurecimentos, atitudes fundamentalistas de grupos. Aqui há um vasto campo de recíproca crítica e de processos de purificação. Assim como a doença remete à saúde, de forma semelhante a experiência espiritual devolverá saúde às religiões. Deste diálogo orante nascem os pontos de convergência que fundam a paz possível entre as religiões, um dos fatores da paz mundial.

Mas há igrejas, especialmente entre nós, as neopentecostais que seguem a lógica do mercado e fazem da religião um grande negócio, não raro explorando os pobres com a teologia da prosperidade e ultimamente com a teologia do domínio. Por procurarem vantagens econômicas, facilmente se aliam a partidos políticos de vertente mais conservadora. Desta forma desnaturam a religião e a igreja, pois estas não foram feitas para o mercado, mas para atender às demandas espirituais das pessoas.

Pontos de convergência no diálogo inter-religioso

O diálogo continuado permitiu estabelecer entre as religiões pontos comuns elencados ainda em 1970 na Conferência Mundial das Religiões em favor da Paz em Kyoto. Esses pontos convergentes foram assim formulados e reforçados anos depois no grande encontro em Chicago.

(i) Há uma unidade fundamental da família humana em igualdade e dignidade de todos os seus membros. (ii) Cada ser humano é sagrado e intocável, especialmente, em sua consciência. (iii) Toda comunidade humana representa um valor. (iv) O poder não pode ser igualado ao direito. O poder jamais se basta a si mesmo, não é jamais absoluto e deve ser limitado pelo direito e pelo controle da comunidade. (v) A fé, o amor, a compaixão, o altruísmo, a força do espírito e a veracidade interior são, em última instância, muito superiores ao ódio, à inimizade e ao egoísmo. (vi) Deve-se estar, por obrigação, do lado dos pobres e oprimidos e contra seus opressores. (vii) Alimentamos profunda esperança de que no final a boa vontade triunfará.

Como se depreende, esse diálogo não se exaure em si mesmo. Ele se ordena a algo maior: à paz entre os povos, à paz com a Terra, à paz com os ecossistemas, à paz do ser humano consigo mesmo e à paz com a fonte originária de onde veio e para onde vai. Essa paz é, como bem o definiu a Carta da Terra, “a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas, com outras vidas, com a Terra e como o Todo maior da qual somos parte”.

O diálogo aberto entre as religiões significa, portanto, a convivência pacífica e alegre entre os mais diversos caminhos espirituais que veem, em sua diversidade, uma riqueza do único e mesmo mistério frontal do qual viemos e para o qual rumamos. Sua contribuição é fundamental para a paz entre os diversos povos habitando a mesma Casa Comum.

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