Por Fábio Pescarini
(Folhapress) — João, um militar da ativa e fã de futebol, gostava de dar palpites em resultados de jogos. No início, suas apostas eram apenas por diversão e até se empolgou ao ganhar algumas vezes. No entanto, à medida que elas se tornaram frequentes, começou a perder mais do que ganhava e acumulou uma dívida considerável.
O vício começou a afetar a vida de João. Ele passou a ficar menos tempo com a família e os amigos, concentrando-se nas apostas. Sua saúde mental acabou prejudicada, pois se tornou cada vez mais estressado e ansioso por causa das perdas.
João é um personagem hipotético, cuja história é contada em uma cartilha criada pelo Exército para tentar evitar que apostas esportivas online, as chamadas bets, tornem praças e oficiais em militares endividados e com problemas psicológicos que possam prejudicar a própria Força.
O caderno de orientação “Prevenção ao Vício de Apostas” está publicado no site da Diretoria de Assistência ao Pessoal do Exército. Seu conteúdo também é tema de palestras ministradas por oficiais, psicólogos e assistentes sociais em mais de 600 organizações militares espalhadas pelo país.
Não há dados estatísticos para mensurar o tamanho do problema, mas ele foi citado em uma aula do general Alcides Valeriano de Faria Júnior, chefe do CCOMSEx (Centro de Comunicação Social do Exército), a um grupo de jornalistas que integrou no início do mês um curso para atuação em áreas de conflito, ministrado no CCOPAB (Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil), no Rio de Janeiro, do qual a Folha participou.
Na fala, que estava no meio de um resumo das atividade do Exército, o general afirmou que as apostas eletrônicas se tornaram uma preocupação militar.
Oficiais ouvidos pela reportagem dizem haver o temor de que a jogatina online chegue a extremos, como inflar estatísticas de suicídio — nas palestras, os militares explicam que o vício cria problemas físicos e mentais, como ansiedade e depressão.
Ou que a bola de neve financeira criada pelas perdas em apostas leve o endividado a cometer crimes, como furto de arma em quartel para ser usada como pagamento de agiota, por exemplo.
Vício em apostas
- Perda de controle.
- Sintomas de abstinência.
- Problemas psicológicos.
- Danos sociais.
- Persistência do jogo apesar dos riscos.
- Problemas familiares, sociais e profissionais.
Além da saúde física e mental da tropa, o Exército está de olho na incapacidade desse viciado em cumprir suas missões.
“A prevenção, de todos os cadernos [há várias ações socioassistenciais no programa, inclusive para outros tipos de endividados], visa que o militar esteja pronto para cumprir a missão dele”, afirma o capitão Souza Dias, da Diretoria de Assistência ao Pessoal, que chama o documento de “cartilha viva”, pelas atualizações que ela precisa ter por causa da evolução dos jogos online.
O tema começou chamar a atenção no ano passado, quando “censores” — oficiais — alertaram para a existência do problema em seus comandados.
“Começamos a trabalhar na prevenção porque o Exército é um extrato da sociedade e, se é um problema está ocorrendo na sociedade, uma hora isso vai acontecer na Força”, afirma o capitão.
Sintomas de vício em jogos
- Passar tempo demais nas telinhas.
- Pensar sobre jogos por muito tempo.
- Sentir-se ansioso ou tenso quando não está jogando.
- Gastar quantias descontroladas em jogos.
- Aumento na irritabilidade ou impaciência.
- Necessidade de estar conectado o tempo todo.
- Mentir sobre jogar.
- Sentimento constante de culpa.
- Indisponibilidade.
- Distanciamento ou isolamento.
- Problemas de organização.
- Procrastinação.
- Dificuldade de se inserir em situações sociais.
Exército: cartilha
Em sua introdução, o caderno, publicado em 17 de julho de 2023, mas atualizado em maio passado, diz que ele é uma forma de chamar atenção, informar e sensibilizar a “família militar” sobre a importância da identificação precoce dos fatores de risco relacionados ao vício em apostas e orientar a necessidade da busca de ajuda.
“As sequelas do vício em jogos ocorrem do mesmo modo que acontecem com outros problemas de saúde mental”, diz trecho do documento. “O caminho mais adequado é obter o tratamento precoce. O quanto antes reconhecer a situação de dificuldade que está passando, maior será a probabilidade de alcançar êxito no enfrentamento a essa situação.”
O texto ainda orienta a necessidade de o militar envolvido com transtorno ser recebido pelo comando “sem julgamentos e preconceitos, mostrando-se disponível para ouvir, colocando-se no lugar da pessoa, e, principalmente, incentivando e orientando a buscar ajuda profissional”.
“Certamente são formas de acolher e possibilitar que aquela pessoa perceba que existe saída para a situação que está passando”, afirma a cartilha.
O documento e as palestras, que usam estatísticas da OMS (Organização Mundial da Saúde), orientam que, se o militar apresentar transtorno de jogos, deve ter sessões de assistência social, psicoterapia, tratamento com medicamentos e até adesão a grupos de apoios de jogadores anônimos.
“O jogo patológico pode ter efeitos devastadores em indivíduos e famílias, mas a recuperação é possível”, diz a cartilha.
Marinha e FAB
Marinha e Aeronáutica também tratam o assunto. A FAB (Força Aérea Brasileira) afirma ter lançado o PEF (Programa de Educação Financeira), que tem no seu escopo um cronograma de trabalho relacionado aos gastos com apostas.
“O Instituto de Psicologia da Aeronáutica possui estudos que evidenciam que o envolvimento excessivo com apostas provoca impulsividade, podendo desencadear uma série de transtornos emocionais e psicológicos”, diz a FAB.
A Marinha afirma que a DASM (Diretoria de Assistência Social) tem implementado iniciativas de prevenção e conscientização sobre jogos patológicos, como palestras socioeducativas, rodas de conversa, anúncios em sua rádio e na internet, além da produção de reportagens.
O Espaço de Consciência e Cuidado, do Hospital Central da Marinha, também incluiu jogos e apostas em um centro de estudos da assistência social direcionado à prevenção do consumo abusivo de álcool e outras drogas. “O tema ainda foi incluído em um estágio de educação financeira para multiplicadores.”
O psiquiatra e pesquisador Rodrigo Machado, do Ambulatórios de Transtorno do Impulso, setor responsável pelo tratamento de viciados em jogos no IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), reforça que o paciente precisa de uma equipe multidisciplinar, formada por psiquiatras, psicólogos, de aconselhamento financeiro e grupos como jogadores anônimos.
A família, explica, também tem papel importante para o sucesso do tratamento e deve dificultar o acesso a finanças e a aparelhos eletrônicos, como celular, a quem tem o transtorno.
“O perfil do paciente hoje é de pessoas cada vez mais jovens, inclusive adolescentes, que acabam chegando aqui levadas pela família”, afirma o psiquiatra, sobre o ambulatório que é referência no país nesse tipo de atendimento. “O melhor é buscar ajuda rápido.”
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