Por Gustavo Cabral*
O laudo falso sobre Boulos e as acusações de Marçal, que responsabilizou a família de Tabata pela morte de seu pai, representam uma questão muito mais complexa do que aparenta. É crucial destrinchar essas situações, indo além das implicações políticas, para entender as profundas repercussões éticas e sociais envolvidas.
O uso de laudos médicos falsos representa um grave problema ético e legal, envolvendo uma série de crimes que vão desde a falsificação de documentos até a fraude. No caso do laudo que Marçal compartilhou sobre Boulos, diversas questões preocupantes emergem.
A confecção de um laudo falso não só compromete a integridade do profissional de saúde e da clínica envolvida, mas também expõe o candidato a implicações legais sérias. Além disso, a desconfiança gerada em relação ao sistema médico e às instituições pode ser um efeito colateral devastador, afetando não apenas os envolvidos, mas a sociedade como um todo, que depende da confiança em diagnósticos e laudos médicos legítimos.
Dito isso, vamos conversar sobre outro ponto importante. Nesse caso, o candidato Boulos é uma pessoa livre de substâncias ilícitas. Mas, se ele tivesse um passado de luta contra um vício? Ele deveria ser criminalizado agora? Não seria uma questão complexa e dolorosa, que deveria ser lida de forma diferente?
Quando uma figura, pública ou não, é exposta de forma tão negativa, como no caso de um laudo falso, os impactos emocionais e psicológicos podem ser devastadores. O estigma associado às drogas e à recuperação pode levar a uma série de consequências trágicas para indivíduos que já enfrentam um caminho difícil.
Um candidato (ou qualquer outra pessoa) que já passou por problemas relacionados ao vício pode, sob pressão pública e julgamentos severos, sentir-se completamente desamparado, levando a um estado de desespero. Esse tipo de pressão pode desencadear crises existenciais que culminam em comportamentos autodestrutivos, como o suicídio. É fundamental que a discussão sobre a política e a saúde mental se torne mais humana, considerando sempre o impacto que nossas ações têm sobre os outros.
Inclusive, é fundamental lembrar neste momento do caso do pai da candidata Tabata Amaral, especialmente considerando a gravidade das acusações feitas por Marçal, que responsabilizou a família de Tabata pela morte de seu pai. Essa narrativa irresponsável não apenas ignora a complexidade da dor da perda, mas também desumaniza as experiências vividas por aqueles que ficam.
Quando uma pessoa perde a vida, as repercussões vão muito além da tragédia imediata; a família se vê mergulhada em um turbilhão emocional que pode levar a traumas duradouros. O luto é um processo já desafiador por si só, mas quando acompanhado de acusações e julgamentos externos, esse processo se torna ainda mais complicado. As relações familiares podem se deteriorar, o estresse emocional pode desencadear problemas de saúde mental e, em alguns casos, a culpa e a vergonha podem criar um ambiente insuportável.
Além disso, a forma como a sociedade reage a essas situações pode perpetuar um ciclo de sofrimento. As palavras de Marçal ferem a memória do falecido e amplificam a dor de uma família que já está lutando para lidar com a perda. É crucial lembrar que, por trás das narrativas políticas e das disputas eleitorais, existem vidas reais, com histórias, desafios e feridas profundas.
A responsabilização de terceiros pela tragédia de um indivíduo, especialmente de um pai, reflete uma falta de empatia, de caráter, de humanidade que pode ter consequências devastadoras para a saúde emocional e psicológica dos envolvidos.
Falando em destruição de famílias, é crucial destacar como a anarquia na saúde ficou escancarada durante a pandemia de Covid-19, expondo fragilidades profundas e crimes contra a vida, observados na estrutura de governança da época. No primeiro ano da pandemia, quando o então ministro da Saúde decidiu tomar atitudes baseadas em evidências científicas para controlar a pandemia, o que aconteceu? Ocorreu sua demissão! Ilustrando uma dinâmica alarmante, que o presidente da época passou a buscar por um novo ministro que estivesse alinhado com uma agenda política, em detrimento da saúde pública. O que se seguiu foi uma série de decisões que ignoraram diretrizes científicas e promoveram a confusão e o medo entre a população.
A resistência ao distanciamento social e uso de máscara, a minimização da importância da vacinação e a promoção do uso de medicamentos sem comprovação de eficácia demonstraram uma falta de compromisso com a saúde coletiva e desrespeito pela vida. Isso não se tratava apenas de uma abordagem inadequada frente a uma crise sanitária, mas sim de uma verdadeira abdicação da responsabilidade governamental, que culminou em consequências trágicas para muitas famílias que perderam entes queridos ou enfrentaram problemas de saúde decorrentes da Covid-19.
Além disso, o episódio em que o presidente buscou um laudo falso para afirmar que se vacinou, enquanto tentava desestimular a vacinação em massa, revela um cinismo que vai além da política: é uma traição à confiança pública. Ao tentar burlar as normas de saúde para obter acesso aos Estados Unidos, ele não apenas contradiz suas próprias ações, mas também envia uma mensagem clara de que os interesses pessoais podem sobrepor as necessidades de saúde da população. Essa manipulação do sistema de saúde e a desinformação disseminada por lideranças políticas contribuem para a desconfiança generalizada na ciência e na medicina, criando um ciclo vicioso que gera um prejuízo difícil de calcular.
Por fim, é fundamental ressaltar que os eventos ocorridos durante a eleição para prefeitura de São Paulo, do corrente ano de 2024, como o compartilhamento de um laudo falso e a responsabilização da família pela morte de um pai envolvido com drogas, representam uma continuidade preocupante de práticas que emergiram durante a pandemia de Covid-19.
Esses episódios não são incidentes isolados, eles partem de um padrão mais amplo de desrespeito à ética e à verdade, que pode ter consequências devastadoras para a sociedade. Se não houver uma clara judicialização e criminalização dessas ações, corremos o sério risco de abrir precedentes perigosos para o futuro. A impunidade em relação a práticas fraudulentas e desumanizadoras pode criar um ambiente onde a manipulação da verdade e o uso de desinformação se tornem normais, prejudicando comunidades inteiras.
Dessa forma, a necessidade de estabelecer barreiras legais contra tais práticas é urgente; sem um sistema que responsabilize aqueles que se aproveitam da vulnerabilidade alheia, seremos impotentes para evitar que essa espiral de desinformação e desumanização continue a se desenrolar.
*Imunologista PhD pela USP, Pós-Doutor pelo Instituto Jenner da Universidade de Oxford, Inglaterra e Pós-Doutor Sênior pelo Hospital Universitário de Bern, Suíça.
Atualmente é Coordenador de Pesquisa para o Desenvolvimento Tecnológico de Vacinas no Departamento de Infectologia e Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP.
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