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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

O chá de revelação do bebê Brasil

Mal respirou e o racismo já disse: “bem-vinda”.
17/10/2024 | 07h00

Quando nasceu minha irmã, uma amiga (branca) do meu pai olhou para o bebê no berçário e depois para ele penalizada. “Coitado… ela é branca!” A exclamação vinha com a mensagem implícita de que ele, um homem retinto, “obviamente” não devia ser o pai daquela menina. Minha mãe, uma mulher preta, sempre fechava a cara quando escutava esta história em tom de piada, afinal, não dá para saber por onde começar a apontar o absurdo no caso todo.

Difícil saber se o erro está na afirmação inconveniente num momento feliz com o nascimento de uma filha; se na desconfiança de que minha mãe estava enganando o marido sobre a paternidade; se na ignorância em saber que recém-nascidos por vezes são quase transparentes de tão pálidos ou arroxeados; se no preconceito que pula na frente antes mesmo da certidão registrada em cartório. Como nas provas de múltipla escolha, a opção correta é: Todas as respostas acima.

Duro é ver que em 2024 a observação daquela mulher dos anos 70 sobre uma criança que não tinha completado 24 horas sobre a Terra, se transferiu para as redes sociais em insultos, deboches e ironias digitadas indiscriminadamente por gente de todas as cores. O alvo, Nala, a filha recém-nascida da cantora Iza. Bastou para isso que a mãe, tão orgulhosa quanto meu pai estava com o nascimento da minha irmã, divulgasse a palma da mãozinha do neném. A palma da mão…!

O chá de revelação do Brasil tem cor de raiva.

Dá muita preguiça falar sobre colorismo porque o ambiente virtual confere uma autorização para que as pessoas externem sua verborragia nada inteligente sobre o tema, ofendendo e julgando sem nenhum critério, usando um discurso de negritude completamente equivocado e dando armas para certa branquitude igualmente (desculpem o xingamento) burra, mal-intencionada e que aguarda ansiosa manifestações do tipo para dizer: Tá vendo aí? O negro é o maior racista. Tá vendo aí? O racismo reverso, blá, blá”. Desserviço.

Foi a guerra disfarçada pelo discurso de “democracia racial” que jogou os filhos e filhas de relações inter-raciais em uma espécie de não lugar, uma fronteira que os fazem pretos demais para serem brancos e brancos demais para serem pretos. A hipocrisia neste campo por aqui deixou tudo isso muito mal resolvido, a discussão complexa, longa e acirrada, principalmente depois da implantação das políticas públicas de cotas em universidades, nos serviços públicos e em editais culturais.

Não que o fator racial seja irrelevante em uma relação afetiva, ou que não seja transpassado por todas as questões que estão no problema de fundo brasileiro. Não que não se deva debater o tema, as escolhas, os caminhos. A questão que se põe é a simplificação de algo tão profundo na palavra “palmitagem” a ponto de justificar com ela a agressão gratuita, baseada em ressentimentos e frustrações que talvez não sejam da pessoa que se quer ofender, mas da que ofende.

No final, tudo isso demonstra de maneira grandiosa os efeitos colaterais do racismo e o seu trabalho bem-feito. Enquanto se perde tempo com conversas rasas sobre quem é mais ou menos preto, os de sempre continuam, para citar Cida Bento com outras palavras, em seu pacto protecionista e dominador. Como me disse o escritor Robert Jones Junior sobre este “método” durante a Flip 2024: Nunca falhou“.

O esquema que joga milhares para tentar engajamento fazendo piadas sobre “palmitagem” ou arriscando reflexões irrefletidas nas redes usando como escada qualquer pessoa, inclusive um bebê, não é coisa inocente e sem consequência. Confunde, atrapalha, tira o foco, (neste caso) perturba uma mulher no difícil período do puerpério e cria um histórico nefasto para a criança antes mesmo de completar dois dias de vida.

Estatísticas dizem que aos quatro anos crianças negras já sabem reconhecer o racismo e a escola é ambiente mais apontado pelos brasileiros como lugar onde os incidentes acontecem. Sim, a escola é um microcosmo do país. No entanto, antes desta idade, as questões raciais se manifestavam majoritariamente na esfera institucional. Com a era digital, esse lixo precoce chegou para essa fase da vida ainda tão frágil de maneira ainda mais intensa e amplificada.

Uma pena que a fratura nas nossas relações étnico-raciais seja tão funda que nada possa calcificar. Nem mesmo quando uma pequenina mão espalmada, que acabou de sair de uma barriga grávida, apareça apenas querendo avisar: “Oi, cheguei bem pessoal!”.

Grande parte não faz a menor ideia do que está dizendo, mas muitos sabem sim. Ô, se sabem! Ferir é o único objetivo.

Bem-vinda de verdade, Nala! Siga na vida sem se deter, mas se proteja. A vida é bem mais complicada para quem (seja ou não retinto) não nasce branco.

 

SAIBA MAIS:

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