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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

A glorificação da pobreza nas Olimpíadas

A verdadeira questão aqui é o completo abandono dos pobres no nosso país
07/08/2024 | 06h53

Na medida em que chegam as primeiras medalhas, apesar de toda falta de incentivo ao esporte no Brasil, começam também as odes da mídia ao “esforço”, apesar de todas as dificuldades das atletas dado que a maioria é de jovens vindos das classes populares. É verdade que um esforço descomunal está por trás de quem decide, com pouca comida adequada e poucas condições, se dedicar ao que quer que seja, chegar nas Olimpíadas e lutar de modo competitivo com atletas muito melhor preparados no decorrer da vida. O que Rebeca Andrade e outros fizeram é, efetivamente, de um heroísmo descomunal.

Mas na nossa grande mídia, ao invés de uma crítica ao descaso no esporte, mero espelho do descaso geral pelos pobres, tem sempre o elogio meritocrático, ou seja, aquele que diz que quem quer de verdade consegue, apesar de todas as dificuldades. Nada mais venenoso do que este discurso que justifica todas as desigualdades e supõe que tudo é fruto de desempenho meramente individual.

A vida e o cotidiano dos pobres neste país são um verdadeiro inferno social, onde a fome ou a pouca comida, a falta de estímulos de toda ordem e a precariedade geral da vida perfazem o núcleo do viver. A classe média, ao contrário, recebe todos os estímulos de mão beijada pela socialização familiar privilegiada, e depois pela escola particular onde os filhos dessa classe irão receber todos os estímulos para as carreiras de sucesso mais tarde. E tudo isso com os pais bancando o tempo livre dos filhos para que só estudem. Nesse contexto, falar de meritocracia é um acinte, pela enorme disparidade de ponto de partida.

Um desses casos mais emblemáticos é o de Valdileia Martins, que se tornou atleta no MST por conta do esforço de seu pai em transformar uma gleba da reforma agrária em um local que propiciasse, também, além de algodão, o desenvolvimento de atletas. Ele conseguiu levar a filha a uma final das Olimpíadas no salto com vara, mas não conseguiu vê-la no seu instante de glória, posto que morreu de enfarte alguns dias antes. O caso tem, portanto, todos os ingredientes de um drama cinematográfico para a imprensa faturar em cima do caso.

No entanto a verdadeira questão aqui é o completo abandono dos pobres no nosso país, dos quais nos lembramos apenas em ocasiões especiais como as Olimpíadas. A falta de apoio ao esporte se liga ao abandono pela escolaridade precária e na ausência de cuidados da saúde. O fato de um entre um milhão de pobres conseguir superar os obstáculos da pobreza não implica, portanto, em celebração da meritocracia.

É, ao contrário, o instante de se pensar quantos cientistas de renome, quantos escritores de talento, quantos atletas extraordinários poderíamos ter se não existisse essa condenação dos pobres à falta de acesso a tudo, possibilitado pela perseguição e ódio dos brancos das classes altas. Todo governo que tentou redimir os pobres foi apeado do poder por um golpe de Estado. A corrupção sempre foi um pretexto mentiroso. Quantas Valdileias teríamos se essa condenação fosse exposta e criticada devidamente? As Olimpíadas deveriam ser o espaço ideal para esta reflexão social.

 

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