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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

A morte, indesejada das gentes

Para isso, que os vivos se livrem do interdito da morte, vivendo a vida quebrando as correntes, celebrando as gentes, preparando a finitude do corpo. Afinal, o que a gente leva da vida é a vida que a gente leva
24/09/2024 | 05h00

As sociedades ocidentais, nos últimos 200 anos, se constituíram em função de esconder a morte. Explico: a morte, o fim da existência de um sujeito, não era tida como um tabu, algo que não se pode mencionar ou algo que deva ser evitado. Pelo contrário, uma série de rituais preparava os viventes para a passagem do moribundo. Morria-se em casa, longe das luzes brancas e das máquinas medonhas dos hospitais. Morria-se simplesmente, sem a expectativa de que a tecnologia iria nos redimir da dor da morte e nos fazer viver, prolongando sofrimentos.

Há hoje toda uma indústria de fazer viver mais, que não beneficia apenas o mero mortal que quer mais um pouquinho de vida neste mundo, mas que garante o lucro de uma gama imensa de convênios, de médicos inescrupulosos e de uma indústria que mercantiliza também a nossa dor. Não basta viver e pagar impostos, é preciso que se morra para pagar outros tantos. Faz tempo que a morte não é mais uma festa.

Lembremos que ritualizar a morte, preparar o corpo para a passagem, enfim, confortar o coração dos viventes é rito antigo da humanidade e talvez um de seus traços mais importantes como “civilização”, basta lembrar dos egípcios para termos a medida do cuidado com os mortos. Trata-se de darmos dignidade ao morto e seus entes queridos. Como é que pudemos acreditar, na medida em que tudo se torna mercadoria, que a morte também ela não seria capturada por uma indústria cruel? Vive-se mais, sim, mas a que custo? Enterrar nossos mortos exige tempo, recolhimento, reflexão. Mas quem é que consegue parar? Das mortes de indivíduos no cotidiano dos velórios às mortes em massa provocadas por catástrofes e guerras constantes, os corpos — animados pela vida — se transmutam em mórbidos, frios, pálidos, gélidos.

Fica a memória, a palavra, os indícios de que aquela pessoa de fato existiu neste plano e, quiçá, existirá em outro. É comum ouvir, depois de certa idade, que os convites vão mudando. Das festas de aniversário e nascimento à uma fileira de mortes, velórios, enterros. Eu mesmo, no último ano, fui em pelo menos quatro funerais de gente muito amada e querida. E repito, não se trata de não querer ir, se trata de fazer morrer com dignidade. Falar da morte, da dor, do luto. Trazê-la novamente para a condição que lhe é devida: a única certeza desta vida. De resto, deixemos também “os mortos enterrarem os mortos”. Para isso, que os vivos se livrem do interdito da morte, vivendo a vida quebrando as correntes, celebrando as gentes, preparando a finitude do corpo. Afinal, o que a gente leva da vida é a vida que a gente leva. E aí, quando a “indesejada das gentes chegar”, iniludível, que a mesa esteja posta, pode a noite descer.

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Ao historiador Dirceu Franco Ferreira (1980–2024), in memoriam, exímio narrador das tristezas e alegrias do mundo. 

“Morte e Vida”, óleo sobre tela, do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt. A pintura encontra-se no Leopold Museum em Viena. Fonte: Domínio Público

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