ICL Notícias
ouça este conteúdo

Por Amanda Prado

Quando o samba da Mangueira ecoa pela Marquês de Sapucaí no trecho que diz “sou a voz do gueto”, Ana Paula Oliveira sente como se a frase falasse dela. A Estação Primeira de Mangueira trouxe ao Carnaval de 2025 uma celebração à cultura bantu, herança afro-brasileira. Com o tema “À Flor da Terra — No Rio da Negritude entre Dores e Paixões”, a escola destacou práticas, palavras e costumes trazidos pelos escravizados e que fazem parte da identidade cultural do Brasil. Ana Paula é liderança da rede Mães de Manguinhos, um movimento social que orienta e acolhe outras mães que sofrem com a violência de Estado nas favelas.

A voz do gueto a que o samba-enredo se refere é uma menção à própria Mangueira como “a dona das multidões e matriarca das paixões”, frase que vem em seguida. Como mãe, Ana Paula se identifica de novo. Ela é a própria imagem da resistência e da luta dos povos pretos diante das injustiças. No mesmo dia do desfile, 2 de março, o Brasil ganhou um Oscar com um filme que conta a história de uma mulher que lutou por justiça, verdade e memória. A história de coragem de Eunice Paiva, retratada em ‘Ainda estou aqui’, é também a história de coragem das Mães de Manguinhos.

Manguinhos é uma favela na zona norte do Rio de Janeiro. Na Sapucaí, Ana Paula representou um coletivo de mulheres incansáveis na luta pela memória de seus filhos vítimas da violência policial. “Represento mulheres e mães sofridas, marcadas com a dor de perder um filho pelas mãos dessa polícia sangrenta. Mães que tantas vezes adoecem sem conseguir denunciar, batalhar, porque o sistema nos deixa exaustas. Eu sinto que o samba conversa comigo. Sei que a matriarca é a Mangueira, mas eu como mãe peguei um pouco do sentido para mim, como se eu também fosse a própria Mangueira. O que, no fundo, sei que sou também, porque sou a favela”, relata Ana Paula em entrevista ao ICL Notícias.

Mangueira

Ana Paula Oliveira e o menino José William Ferreira de Paula, mais conhecido como “Cria Zé”, símbolo do enredo da Mangueira em 2025

“Eu já tinha me apaixonado pelo samba antes de receber o convite. Me impactou muito quando a letra fala ‘o corpo que a bala insiste em achar’. Porque sabemos que é sempre o corpo preto, pobre, de favela. O samba é uma denúncia. Quando o e-mail chegou me chamando para desfilar, nem acreditei. Precisei checar se aquilo era verdade. É muito gratificante”, diz Ana Paula.

Para ela, o convite para o desfile é também um reconhecimento da luta dela contra o racismo. “A minha luta é uma luta pela vida. Pelas vidas nas favelas. Pela vida do povo preto. Pela vida e a liberdade da juventude negra. Luta que eu enfrento há quase onze anos, desde maio de 2014 quando meu filho foi assassinado injusta e covardemente por um PM, quando voltava da casa da avó dele na favela”, diz.

Ana Paula é uma das fundadoras da rede Mães de Manguinhos, coletivo formado por mulheres cujos filhos foram vítimas da violência policial. (Foto: Amanda Prado)

Ana Paula Oliveira desfilou em um carro com pessoas que representam as lutas sociais, como a premiada escritora Conceição Evaristo, a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, o ativista Rene Silva, a ativista Lígia Batista e a ex-vereadora Mônica Cunha, criadora da Comissão Antirracista da Câmara do Rio.

“Pude celebrar e gritar e dançar com as mesmas pessoas que encontro na luta, nas mesas de debates, no Fórum, no Ministério Público. A Sapucaí vira um espaço onde podemos viver nossas dores e alegrias como numa catarse. De uma forma majestosa, coroada na avenida. Para mim, o convite para o desfile é o resultado de uma luta de anos mas também do imenso amor que eu continuo cultivando, regando pelo meu amado filho Johnatha. Ele é um ser de luz que me faz iluminar e nascer do chão da favela… Me faz florescer”, diz Ana Paula, em referência ao trecho do samba-enredo que canta “Flor da terra de Mangueira (…) o povo bantu que floresce nas vielas”.

Mangueira

Ana Paula Oliveira, liderança das Mães de Manguinhos, e Lígia Batista, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco. (Foto: Amanda Prado)

“É um espaço de alegria e de celebração, mas também um espaço de luta e de protesto. A luta do nosso povo bantu é uma luta ancestral. A avenida é o nosso encontro com a ancestralidade, sagrada pra mim. É um encontro com o meu filho Johnatha”, disse Ana Paula, que em 2024 também desfilou na Portela.

A azul e branco homenageou mães vítimas da violência em um carro que fechava o desfile, com 16 mulheres, incluindo Marinete Franco, mãe de Marielle Franco. O enredo era inspirado no livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, destacando figuras como Luiza Mahim, mãe de Luiz Gama.

A Estação Primeira de Mangueira ficou em sexto lugar entre as doze escolas que desfilaram no Grupo Especial do Rio de Janeiro. A escola retornou à Sapucaí no sábado (8), abrindo o desfile das campeãs, quando as seis primeiras colocadas se apresentam novamente para o público no Sambódromo.

Mangueira celebra a herança bantu

“Aproximadamente 80% dos escravizados que desembarcaram no cais eram de origem bantu. Isso influencia não apenas a cultura brasileira, mas a construção sociocultural da cidade do Rio de Janeiro. Principalmente o idioma, diretamente afetado pela cultura bantu, com palavras como ‘xodó’ e ‘quitanda’”, disse o carnavalesco Sidnei França.

A Mangueira apresentou a cultura de rua e as danças dos guetos, do subúrbio carioca, reafirmando seu compromisso em unir Carnaval com engajamento social. O desfile trouxe referências à musicalidade, religiosidade e tradições bantu, evidenciando o impacto desse povo na formação da negritude brasileira e carioca.

Desfile Mangueira

(Foto: Agência Brasil)

Trechos do samba da Mangueira que se relacionam com a luta das Mães de Manguinhos

Sou a voz do gueto, dona das multidões / Matriarca das paixões, Mangueira / O povo banto que floresce nas vielas / Orgulho de ser favela / Sou Luanda e Benguela / A dor que se rebela, morte e vida no oceano / Resistência quilombola / Dos pretos novos de Angola / De Cabinda, suburbano (…) Mistério das calungas ancestrais / Que o tempo revelou no cais / E fez do Rio minha África pequena.

Forjado no arrepio / Da lei que me fez vadio / Liberto na senzala social / Malandro, arengueiro, marginal / Na gira, jogo de ronda e lundu / Onde a escola de vida é zungu / Fui risco iminente / O alvo que a bala insiste em achar / Lamento informar / Um sobrevivente.

Relacionados

Carregar Comentários

Mais Lidas

Assine nossa newsletter
Receba nossos informativos diretamente em seu e-mail