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A guerra é um horror, não desvie o olhar: crianças são amputadas sem anestesia em Gaza

Feridas pelas bombas, algumas precisaram passar por cirurgias em mesas de cozinha
05/10/2024 | 05h00

Por Francesca Mannocchi/La Stampa — Agência Pública

Em dezembro do ano passado, o médico palestino Hany Bseiso teve que fazer uma escolha: amputar a perna de sua sobrinha de 18 anos, A’hed, e fazer isso na mesa da cozinha — com tesouras, agulha, linha e sem anestesia — ou vê-la sangrar até a morte. Na casa da família, na cidade de Gaza, os combates ao redor tornaram impossível chegar a um hospital — e assim o Dr. Bseiso pegou as tesouras e as ataduras que tinha em sua bolsa médica e removeu a parte inferior da perna dela.

Hoje, há provas de quanto a garota sofreu, pois outro parente filmou aquela amputação como testemunho do que estava acontecendo. Sabe-se quanto ela gritou quando viu o coto da perna sobre a mesa da cozinha.

Um anestesista de Gaza que trabalhava no hospital Al-Shifa até que foi invadido por tropas israelenses em novembro disse à Reuters que o hospital realizava frequentemente 20 amputações por dia: “Havia crianças no chão cobertas de queimaduras, com os pés amputados, recém-nascidos que haviam perdido as mãos. Lembro de uma criança pequena cuja perna e braço direitos foram arrancados. Ele estava com hemorragia e nós nem tínhamos um dreno torácico, não tínhamos nada para aliviar a dor dele”.

Gaza: ‘tudo era evitável’

Em junho, um total de pelo menos 2 mil crianças em Gaza teve uma ou ambas as pernas amputadas após ações militares israelenses, de acordo com as Nações Unidas: é o equivalente a aproximadamente dez crianças amputadas por dia.

O principal centro de próteses de Gaza, um hospital financiado pelo Catar, na cidade de Gaza, fechou nos primeiros meses da guerra após uma incursão israelense. Em Gaza, 41% da população tem menos de 14 anos e um número alarmante dos feridos na guerra são crianças.

“As tropas israelenses cercaram o banco de sangue, então não podíamos fazer transfusões” — Ghassan Abu Sitta, Cirurgião britânico-palestino

O cirurgião britânico-palestino Ghassan Abu Sitta, especialista em medicina de guerra, trabalhou por 43 dias nos hospitais Al-Shifa e Al-Ahli, em Gaza, antes de ser evacuado. Em novembro, ele disse ao The New Yorker: “Os israelenses cercaram o banco de sangue, então não podíamos fazer transfusões. Se um membro estava sangrando muito, tínhamos que amputar”.

A falta de suprimentos médicos básicos é uma das principais razões para o alto número de amputações. Feridas abertas devem ser tratadas imediatamente para evitar infecções e gangrena: quando isso ocorre, a amputação se torna o único tratamento viável. Todos os médicos que tratam mutilações de guerra concordam que, se os feridos pudessem chegar aos hospitais ou ser evacuados do país mais rapidamente, muitas amputações poderiam ter sido evitadas.

Pelo menos 2.000 crianças em Gaza tiveram uma ou ambas as pernas amputadas após ações militares israelenses (Foto: Francesca Mannocchi/La Stampa)

‘Onde está minha perna, pai?’

Karim al-Shayyah está sentado no sofá do abrigo no complexo Thumama, em Doha, no Catar. Ele está usando um sapato preto no pé direito, o outro está no carpete. Karim perdeu a perna esquerda. “Você tem que colocar o outro sapato na sua prótese”, disseram a ele quando trouxeram o membro artificial. Mas ele se recusa a usá-lo. E também não quer usar muletas. Prefere pular em sua perna restante.

Ele compartilha memórias detalhadas do dia de abril em que foi ferido. Karim e sua família fugiram da cidade de Gaza em direção a Nuseirat, onde viveram na casa de parentes por 50 dias antes de se mudarem para Rafah, onde dormiram em um abrigo improvisado no que costumava ser um jardim de infância.

Karim estava brincando fora de casa com seus primos e irmão quando ouviram o estrondo de um bombardeio que demoliu as casas próximas. Depois outro estrondo, um momento de silêncio após o impacto e, em seguida, os gritos. Ele abriu os olhos e viu os corpos de seus vizinhos, as pernas e braços arrancados dos troncos de suas crianças. A poeira cobria tudo e todos. E então, de repente, a sensação de que seu corpo estava faltando um pedaço. Ele havia perdido um pé.

Os socorristas o levaram ao hospital, mas a perna estava muito comprometida e precisaram amputá-la abaixo do joelho. Seu pai lembra que, ao abrir os olhos após a operação, Karim perguntou: “Onde está minha perna, pai? Para onde foi minha perna?”.

Seu pai, consumido pela tristeza, disse: “Não posso te dar uma nova, mas farei tudo o que puder para te tirar daqui”. Então ele se colocou na lista de evacuação, e em junho chegou a Doha, via Egito. A primeira parada foi o Hospital Médico Hamad, no Catar.

Raiva e resignação

Em dezembro de 2023, o emir Tamim bin Hamad lançou uma iniciativa para realocar no Catar os feridos mais graves e fornecer-lhes cuidados médicos. Após um acordo entre Israel, Hamas, Egito e Catar, os feridos puderam deixar o território palestino pela cidade de Rafah, no sul de Gaza, em direção ao Egito, e depois ao Catar em voos militares.

Em sete meses, aproximadamente 800 crianças e 900 adultos foram evacuados. Eles agora vivem no complexo Thumama, uma vila originalmente construída para acomodar a Copa do Mundo Fifa 2022 no Catar. Cerca de 400 deles são crianças com amputações de membros.

Karim não queria ficar na vila, e não queria falar sobre seu medo e sua dor. “Estou bem, não tenho medo de nada e vou ser engenheiro”, ele declarava. Ele dizia que queria esquecer, e tentava fingir que o membro fantasma ainda estava lá. Mas, pouco a pouco, ele se tornou agressivo. Recusou-se a participar das reuniões em grupo com outras crianças por semanas e teve reações violentas.

Sua mãe, Sabrine, diz que podia ver a tristeza nos olhos dele, como uma sombra escura cobrindo seu rosto. “Ele não queria ver ninguém, recusava-se a brincar com outras crianças no complexo e até com seu irmão.” “Onde está minha perna?” tornou-se “Quando vamos voltar para Gaza?”.

Ao falar sobre sua casa, sua mãe luta para manter a compostura. “Eu não podia dizer ‘nunca mais’, não consigo dizer isso. Mas, no fundo, sei que nunca voltaremos para casa.”

Hoje, Karim não tem mais surtos de raiva e não pergunta mais sobre casa. Ainda assim, ele raramente sai de casa. Duas semanas atrás, ele soube que um querido amigo seu, também deslocado em Rafah, havia morrido. Ele tinha 10 anos.

Karim ainda quer ser engenheiro, mas, antes de tudo isso acontecer, era para seguir o exemplo de seu tio. Agora, ele diz que quer ser engenheiro e reconstruir Gaza.

A perna protética está sempre lá, perto dele, sem uso. “Antes de me ferir, minha vida era boa. Eu brincava com meu primo e meu irmão. Jogávamos futebol, subíamos em árvores e coletávamos lenha para fazer pão. Eu era feliz.”

Mahmoud Ajjour, 9 anos, sorri ao lado de sua mãe. Ele perdeu os braços sob as bombas israelenses em Gaza (Foto: Francesca Mannocchi/La Stampa)

Dirigindo com os pés

Yusif Ajjour também consegue se lembrar em detalhes vívidos do momento que mudou sua vida — e a vida de seu filho. Ele estava a poucos metros de casa, na cidade de Gaza, quando ouviu o estrondo. Viu a fumaça subindo na direção de sua casa e começou a correr. Enquanto caminhava pela rua, encontrou os corpos de seus vizinhos, e outro conhecido que, vindo em sua direção, gritou: “Yusif, corra, corra, seu filho perdeu as mãos, sua esposa foi atingida”.

Ajjour arrastou sua esposa para fora dos escombros e a confiou aos sobreviventes, então pegou seu filho Mahmoud nos braços, colocou-o em um burro e seguiu para um pequeno centro de saúde perto de sua casa.

Era o início de dezembro. Já havia muitos feridos e poucos equipamentos médicos. O pai de Mahmoud se ajoelhou. Ele implorou aos médicos que ajudassem seu filho, e os médicos amputaram os dois braços com muito pouca anestesia.

Mahmoud tem 9 anos. Ele se lembra de estar em casa com sua mãe quando de repente se viu no chão. Lembra-se da voz da mãe orando a Deus para perdoar seus pecados, do som de outro míssil atingindo a casa adjacente e do corpo de sua mãe o protegendo dos estilhaços e detritos. Em seguida, o rosto de seu pai, segurando-o nos braços. Depois, a dor insuportável. Não havia anestesia, morfina, nem analgésicos.

Hoje ele vive no quarto andar do edifício 218/b no complexo de Doha que abriga refugiados palestinos. Ele nunca se entrega à raiva ou ao sofrimento. Ele aprendeu a jogar videogames com os pés e se acostumou a ser alimentado.

Ouvindo seu filho, a mãe de Mahmoud levanta sua camisa para trocá-lo e morde os lábios tentando não chorar.

Mahmoud frequenta o turno da manhã na escola palestina da cidade, e à tarde desce para o parquinho: lá, ele brinca com Amir, que só tem uma perna, Ahmed, que está em uma cadeira de rodas com as pernas paralisadas, e Sanad, que tem apenas um dedo.

O pai de Mahmoud perguntou se era possível ter uma bicicleta personalizada que ele pudesse guiar com os pés. O menino aprendeu a andar nela, correndo na velocidade da luz e soltando gargalhadas. Mahmoud quer ser piloto, ele diz. “Mas aviões de paz.”

 

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