Por Leila Cangussu
Você ouve falar de Cuba desde criança. Na escola, nos jornais, nos memes, nas rodas de conversa. Sempre com um filtro. De um lado, a imagem de um país oprimido por uma ditadura comunista. Do outro, o símbolo romântico da resistência anticapitalista.
Mas, mesmo assim, pouca gente te mostra por que, há mais de sessenta anos, Cuba e Estados Unidos vivem uma relação travada. Bloqueio econômico, propaganda política e um jogo de forças que atravessa décadas.
Entender esse embate ajuda a ler o funcionamento do poder no mundo. Quem impõe sanções. Quem sustenta o bloqueio. Quem lucra com a instabilidade. E quem paga a conta.
A relação entre Cuba e Estados Unidos não começou em 1959
Você já ouviu falar que os Estados Unidos romperam com Cuba por causa da Revolução. Mas o histórico é bem mais antigo. Desde o século XIX, os EUA demonstravam interesse pela ilha. Houve tentativas de compra de Cuba da Espanha. E, após a independência formal em 1902, os EUA mantiveram forte influência política e econômica no país vizinho.
O período da ocupação militar norte-americana entre 1898 e 1902 foi marcado pela imposição da Emenda Platt, que autorizava os EUA a intervir nos assuntos internos cubanos. Essa influência se manteve até 1959, quando o governo de Fulgencio Batista — aliado dos EUA — foi derrubado pela Revolução liderada por Fidel Castro.
A Revolução Cubana e a ruptura com Washington
Em 1º de janeiro de 1959, Fidel Castro, Che Guevara e outros guerrilheiros entraram em Havana. Batista fugiu. Começava um novo ciclo político, com forte apelo nacionalista e anti-imperialista. Em pouco tempo, Cuba nacionalizou empresas estrangeiras, incluindo bancos, usinas, indústrias e propriedades norte-americanas.

Fidel Castro, Che Guevara e companheiros marcham pelas ruas de Havana após a vitória da Revolução Cubana em 1959. A imagem se tornou símbolo de uma ruptura histórica que desafiou o imperialismo dos Estados Unidos e acendeu debates políticos em toda a América Latina. Foto: reprodução
Em resposta, os Estados Unidos impuseram sanções comerciais e romperam relações diplomáticas em 1961. Também apoiaram a fracassada invasão da Baía dos Porcos no mesmo ano. A radicalização do governo cubano levou à aproximação com a União Soviética. O ponto máximo da tensão veio em 1962, com a Crise dos Mísseis.
O embargo econômico: como ele funciona
O embargo dos Estados Unidos contra Cuba começou oficialmente em fevereiro de 1962, quando o então presidente John F. Kennedy assinou a ordem executiva que proibia todas as transações comerciais e financeiras com a ilha.
O que antes era uma série de restrições parciais virou uma política de bloqueio total. Desde então, Cuba está formalmente impedida de acessar boa parte da economia global, não por decisão de mercado, mas por imposição legal dos Estados Unidos.
O que está proibido
O embargo é uma política ativa de restrição econômica que transforma a vida cotidiana em Cuba e afeta a forma como outros países se relacionam com a ilha. O alcance é amplo e interfere em operações básicas do comércio internacional. O que está formalmente proibido inclui:
- Transações financeiras entre empresas americanas e entidades cubanas
- Exportações e importações entre Cuba e os Estados Unidos, com exceções mínimas
- O uso do dólar em operações internacionais envolvendo Cuba
- A entrada de produtos fabricados em outros países que contenham mais de 10% de componentes ou tecnologia dos EUA
Na prática, isso significa que até um computador feito na Alemanha, mas com chips fabricados nos Estados Unidos, não pode ser vendido para Cuba sem licença especial. O bloqueio se estende até os bancos: qualquer instituição que opere em dólares ou tenha negócios nos EUA pode ser penalizada se fizer transações com a ilha. Isso afeta remessas, compras on-line, contratos com empresas estrangeiras, serviços financeiros e até parcerias científicas.
Como o embargo foi reforçado?
Ao longo das décadas, o embargo foi endurecido por leis adicionais. Em 1992, a Lei Torricelli, aprovada no governo George H. W. Bush, proibiu que empresas subsidiárias de companhias americanas em outros países fizessem negócios com Cuba. Ou seja, uma filial da IBM no Brasil, por exemplo, não poderia fornecer serviços à ilha.
Em 1996, a Lei Helms-Burton deu caráter permanente ao embargo. Ela determinou que qualquer suspensão só poderia ocorrer com aprovação do Congresso dos EUA. Também autorizou sanções contra empresas estrangeiras que operem em Cuba utilizando propriedades nacionalizadas após 1959, o que ampliou a pressão extraterritorial sobre governos e empresas de fora dos EUA.
A lista de entidades restritas
Em fevereiro de 2025, o Departamento de Estado Americano atualizou a relação de instituições cubanas com as quais é proibido manter relações comerciais diretas.
O argumento usado pelo governo americano é que essas entidades estariam ligadas aos setores militar, de inteligência e segurança do Estado cubano. Mas a consequência prática é outra: o isolamento financeiro e comercial de amplas áreas da economia da ilha.
A lista inclui:
- Ministério das Forças Armadas Revolucionárias (MINFAR)
- Ministério do Interior (MININT)
- GAESA, grupo empresarial ligado às Forças Armadas
- Empresas como Gaviota, CIMEX e Habaguanex, voltadas ao turismo e comércio
- Redes de hotéis operadas por corporações estrangeiras em parceria com o Estado
- Marinas, agências de turismo, produtoras de rum e tabaco, centros de convenções e serviços logísticos
Com a lista em vigor, qualquer empresa americana ou associada a bancos e sistemas financeiros que operam nos EUA fica proibida de interagir com esses grupos. Isso reduz drasticamente as possibilidades de investimento, encarece operações básicas e empurra Cuba ainda mais para o isolamento econômico.
O efeito teia
O embargo funciona como uma teia. Não se trata apenas de impedir a venda direta entre Cuba e Estados Unidos. Ele afeta qualquer tentativa de integração econômica da ilha com o resto do mundo. Empresas, bancos e governos evitam vínculos com Cuba por medo de punições. É o isolamento forçado por pressão econômica. E ele segue em vigor há mais de seis décadas.

Cubanos protestam contra o embargo econômico dos Estados Unidos segurando cartaz com os dizeres “Abaixo o bloqueio”, durante manifestação em Havana. A cena reflete a resistência popular às sanções impostas desde 1962, que seguem impactando a vida cotidiana na ilha. Foto: AFP
Impactos do embargo na sociedade cubana
O bloqueio não atinge apenas o governo. Ele dificulta a aquisição de medicamentos, alimentos, peças de reposição e insumos essenciais. Afeta serviços de internet, limita transações bancárias e encarece produtos básicos. O acesso a tecnologias com componentes americanos, mesmo que produzidas em terceiros países, é vetado.
Segundo dados oficiais cubanos, o embargo gerou perdas superiores a 159 bilhões de dólares. Estimativas da ONU apontam prejuízos sociais significativos, sobretudo nas áreas da saúde, energia e transporte.
O argumento americano e a realidade
O governo dos Estados Unidos afirma que o embargo é uma forma de pressionar por democracia e respeito aos direitos humanos. Mas o histórico mostra que países com violações semelhantes ou piores, desde que aliados estratégicos, não recebem tratamento semelhante. A medida é seletiva e tem peso geopolítico.
Cuba é o único país do continente americano submetido a um bloqueio tão prolongado. Isso levanta a pergunta: trata-se de defesa de princípios ou de manutenção de hegemonia?
Votações na ONU: o mundo contra o embargo
Desde 1992, a Assembleia Geral das Nações Unidas vota anualmente uma resolução que condena o embargo dos EUA a Cuba. Em todas as ocasiões, a esmagadora maioria dos países votou a favor do fim das sanções. Os únicos votos contrários recorrentes são dos Estados Unidos e de Israel.
Essas resoluções não são vinculantes, mas têm valor simbólico. Reforçam o isolamento diplomático da política de embargo e pressionam Washington a rever sua postura. Mesmo assim, as sanções seguem ativas.
Mudanças parciais e retrocessos
Durante o governo de Barack Obama, houve um movimento de distensão entre Cuba e Estados Unidos. Em 2015, os dois países restabeleceram relações diplomáticas após mais de cinco décadas de ruptura. A embaixada dos EUA em Havana foi reaberta, e algumas restrições foram afrouxadas. Passou a ser possível viajar à ilha com menos burocracia, e os limites para envio de remessas foram ampliados. Em 2016, Obama se tornou o primeiro presidente americano a visitar Cuba desde 1928.

Barack e Michelle Obama desembarcaram em Havana sob chuva fina, em março de 2016. A visita marcou o início de um breve período de reaproximação entre Cuba e Estados Unidos, após mais de meio século de tensão diplomática. Foto: STF/AFP/JC
O cenário mudou em 2017, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. O governo retomou a lógica de pressão total e adotou mais de 200 medidas para reforçar o bloqueio. Entre elas:
- Restrições a voos comerciais e cruzeiros saindo dos EUA com destino a Cuba
- Redução no limite de envio de remessas por residentes cubano-americanos
- Inclusão de Cuba na lista de países patrocinadores do terrorismo
A retórica também mudou. O discurso da Casa Branca voltou a tratar Cuba como ameaça à segurança nacional. Isso justificou novas sanções e afastou qualquer possibilidade de retomada da política de aproximação.
Com Joe Biden, a expectativa era de reversão, mas a maior parte das restrições permaneceu. Em 2022, algumas flexibilizações foram implementadas. O limite para envio de dinheiro foi elevado, e voos comerciais voltaram a ser autorizados para outras cidades além de Havana.
Mesmo assim, a estrutura do embargo segue intacta. O bloqueio não depende só da vontade política do Executivo. Está amarrado à legislação. E, por isso, continua valendo mesmo quando o tom do discurso muda.
Migração cubana e os efeitos do bloqueio
Mais de dois milhões de cubanos vivem fora da ilha. A maioria está nos Estados Unidos. Esse movimento de saída começou logo após a Revolução de 1959 e continua até hoje, em diferentes formatos. Ao longo das décadas, cubanos deixaram o país por motivos políticos, econômicos ou familiares.
A comunidade cubana que vive nos EUA é diversa e nem sempre pensa da mesma forma. Parte apoia o bloqueio e defende uma política mais dura contra o governo de Cuba. Outra parte mantém laços ativos com a ilha. Envia dinheiro, visita parentes e se posiciona contra as sanções.
Em 2022, o número de cubanos tentando entrar nos Estados Unidos aumentou de forma significativa. Muitos fizeram a travessia pela fronteira com o México. Outros usaram rotas marítimas ou voos até países da América Central. O aumento da migração está diretamente ligado ao agravamento das condições de vida em Cuba. A crise econômica, os impactos do bloqueio e a falta de acesso a produtos e serviços básicos estão entre os principais fatores.
A política dos EUA para migrantes cubanos mistura permissões especiais e medidas restritivas. Durante décadas, cubanos tiveram tratamento diferenciado em relação a outras nacionalidades latinas. Mas isso vem mudando. Hoje, a migração é cada vez mais usada como peça no jogo político entre os dois países.
O papel dos meios de comunicação
A cobertura midiática sobre Cuba nos Estados Unidos costuma reforçar a narrativa do fracasso socialista. Pouco se fala sobre os efeitos do embargo. A censura de plataformas digitais e restrições ao acesso de jornalistas também afetam a circulação de informações.
A produção audiovisual sobre Cuba reflete essa disputa de narrativas. Documentários, filmes de ficção e reportagens mostram diferentes perspectivas sobre a realidade cubana. Muitas dessas produções ajudam a compreender o cotidiano da população e os dilemas enfrentados por quem vive na ilha.
Cuba além dos clichês
Cuba não é só o regime político. É uma sociedade com contradições, histórias diversas, avanços em áreas como saúde e educação, e limitações estruturais profundas. É um país afetado pelo bloqueio, mas também por decisões internas. A crítica ao embargo não implica idealização do governo cubano.
Ao longo das décadas, Cuba construiu redes de solidariedade, investiu em ciência e saúde pública e participou de ações internacionais de cooperação. Mas enfrenta sérios desafios econômicos e sociais.
A disputa pelo imaginário
A relação entre Cuba e Estados Unidos é também uma batalha simbólica. Para os EUA, manter o bloqueio é uma forma de reafirmar autoridade política na região. Para Cuba, resistir ao embargo virou parte do discurso de soberania.
Essa polarização impediu debates mais amplos sobre alternativas econômicas, reformas internas e democratização. A política de isolamento favorece o endurecimento do regime e dificulta avanços sociais reais.

O chanceler cubano Bruno Rodríguez participa da cerimônia de reabertura da embaixada de Cuba em Washington, em 20 de julho de 2015. O evento marcou um passo simbólico na retomada das relações entre os dois países, mas o fim do embargo comercial ainda depende de decisão do Congresso dos EUA. Foto: reprodução
O que está em jogo?
Você não precisa apoiar o regime cubano para perceber que o embargo impõe sofrimento à população. A política externa dos EUA com relação à ilha tem menos a ver com defesa de direitos e mais com controle regional. A manutenção das sanções responde a interesses eleitorais e geopolíticos.
Cuba e Estados Unidos vivem um impasse prolongado. Entender esse embate ajuda a refletir sobre soberania, autodeterminação e as formas de poder no sistema internacional.
O que você pode fazer?
- Buscar fontes diversas de informação sobre Cuba
- Acompanhar debates internacionais sobre o embargo
- Ouvir vozes cubanas da ilha e da diáspora
- Refletir sobre o papel dos Estados Unidos no cenário global
- Questionar a seletividade das sanções econômicas
Conclusão
A relação entre Cuba e Estados Unidos não está no passado. Ela segue viva, tensa e cheia de camadas. São mais de sessenta anos de bloqueio econômico, disputas ideológicas, operações secretas, migrações em massa e reaproximações frustradas. Nada disso se resolve com frases prontas.
Cuba continua tentando manter seu projeto político sob pressão constante. Com erros, limites e contradições, mas também com autonomia diante da maior potência do planeta. Os Estados Unidos seguem impondo um bloqueio que já foi condenado por quase todos os países do mundo, mas que permanece por interesses geopolíticos e disputas internas.
Se você quer entender o presente da América Latina e o papel do imperialismo no século XXI, precisa olhar com atenção para o que acontece entre Cuba e EUA. A história não acabou. E o que está em jogo vai muito além de duas bandeiras.
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