Já parou para pensar como o modelo de trabalho que seguimos hoje surgiu? Quem decidiu regulamentar as profissões, criar sindicatos, estabelecer direitos e deveres, definir salários, jornadas e até tributar empregadores e trabalhadores?
A estrutura do trabalho formal é mais recente do que parece. Ela só se tornou realmente necessária após a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, com a Lei Áurea. Foi a partir daí que surgiu a urgência de organizar o mercado e garantir novas formas de controle e proteção – apesar de que, até hoje, o trabalho análogo à escravidão continue sendo realidade em muitos setores.
Ao longo da história, direitos foram conquistados, ameaçados e, em alguns momentos, até retirados. Afinal, o avanço da tecnologia, mudanças econômicas e modelos como o trabalho remoto continuam desafiando as normas que um dia foram tradicionais, mas hoje precisam ser readequadas à nova realidade.
Vamos entender como surgiu a organização formal do trabalho como conhecemos hoje desde o contexto histórico, conquistas, ameaças e eventos marcantes da luta pelo direito trabalhista.
Contexto histórico
O trabalho formal como conhecemos hoje nasceu em 1943 com a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) durante a Era Vargas e foi só a partir deste momento que tivemos a unificação dos direitos regulamentados como a carteira assinada, salário mínimo e a jornada estipulada de trabalho – hoje, com 8 horas diárias e majoritariamente 6 dias por semana.
Se hoje, para algumas pessoas, o trabalho é um direito associado à realização pessoal e motivo de orgulho, nem sempre foi assim.
Durante a Antiguidade, em civilizações como Grécia e Roma, trabalhar estava associado à servidão e à falta de capacidade intelectual. Atividades manuais eram destinadas aos que não tinham habilidades para atuar na política, na filosofia ou nas artes, enquanto as elites se dedicavam ao pensamento e ao governo.
Trabalho e escravidão
Essa lógica atravessou os séculos e encontrou uma nova abordagem com a expansão marítima europeia. Foi baseada nesse pilar que a burguesia portuguesa viu no trabalho forçado uma forma de sustentar sua economia colonial. Assim, cerca de 4 milhões de africanos, entre homens, mulheres e crianças, foram sequestrados, escravizados e enviados ao Brasil para suprir a alta demanda por mão de obra.
Embora a Lei Áurea tenha abolido formalmente a escravidão em 1888, o formato de trabalho no Brasil continuou essencialmente o mesmo, pois não houve uma transição estruturada para uma economia baseada no trabalho livre e formal.
A abolição não veio acompanhada de medidas adequadas para integrar os ex-escravizados à sociedade de forma digna. A maioria se viu forçada a continuar em condições precárias, trabalhando em fazendas ou nas cidades, muitas vezes sob formas de exploração semelhantes à escravidão, como o trabalho informal, a jornada excessiva e os baixos salários.

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão em 1888, quase 20 anos depois dos Estados Unidos e Haiti. Imagem: Reprodução
As primeiras lutas trabalhistas
As leis trabalhistas como conhecemos hoje são fruto de séculos de evolução das relações formais de trabalho que começaram durante a revolução industrial no século 18. Porém, esse período não trouxe apenas a formalização do emprego, mas também as condições degradantes dos trabalhadores nas fábricas tanto no Brasil quanto no mundo.
Um exemplo disso é o que aconteceu em 1833: com o aumento das denúncias sobre condições de trabalho precárias, o Reino Unido aprovou a Factory Act (Lei das Fábricas) – a primeira lei trabalhista do mundo. Essa legislação pioneira estabeleceu as regras básicas para o trabalho em fábricas e foi considerado o primeiro passo para a proteção dos trabalhadores.
No Brasil, a história não foi muito diferente.
A primeira greve da história do Brasil ocorreu em 1858, na cidade do Rio de Janeiro, liderada pelos tipógrafos, trabalhadores das gráficas e editoras. Insatisfeitos com as condições precárias de trabalho, a categoria decidiu se mobilizar para reivindicar melhores salários, redução da jornada de trabalho e condições mais dignas no ambiente profissional.
Apesar de não ser uma greve tão conhecida, esse período de tensão foi a semente para consolidar a organização dos trabalhadores no país e assentar o terreno para novas paralisações que viriam a acontecer.

Em 10 de janeiro de 1858, os compositores lançaram o Jornal dos Typographos, um veículo para denunciar a exploração dos trabalhadores da imprensa e reforçar suas reivindicações salariais. Fotografia: Hemeroteca da Biblioteca Nacional
Greve geral de 1917
No início do século 20, trabalhadores da indústria e do comércio brasileiro protagonizaram a primeira greve geral da história do país. Em julho de 1917, o movimento, que começou no setor têxtil em São Paulo, rapidamente se espalhou para fábricas, portos e transportes, mobilizando milhares de operários. Inspirada por ideias anarquistas e socialistas trazidas por imigrantes italianos e espanhóis, a paralisação foi incentivada pelas condições precárias dos trabalhadores brasileiros.
A lista de motivos era longa: ia desde a jornada exaustiva de até 14 horas diárias, baixos salários, inflação crescente até a repressão policial contra qualquer mobilização social que acontecesse entre os trabalhadores das fábricas da época. Na verdade, foi em uma dessas manifestações que aconteceu a morte do operário José Martinez – ponto de virada para que as movimentações trabalhistas se organizassem e tomassem mais força, chegando aos 30 dias de greve geral.
Conforme o tempo passava e a pressão aumentava, os patrões decidiram concordar com o aumento salarial de até 25%. Mais do que conquistas econômicas, a mobilização de 1917 marcou a consolidação do movimento operário no Brasil, obrigando empresários a reconhecerem a força dos sindicatos e a negociar diretamente com pessoas vistas como mão de obra barata, mas que, agora, seriam respeitados como trabalhadores formais.
O episódio foi um marco na organização da classe operária e abriu caminho para novas mobilizações nas décadas seguintes. Anos depois, na região do ABC paulista, metalúrgicos retomaram a tradição de greves massivas, desafiando o regime militar e impulsionando a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), que mais tarde levaria um ex-torneiro mecânico ao cargo mais alto do país.

Trabalhadores paralisados em São Paulo em 1917. Imagem: Wikimedia Commons
As primeiras greves do ABC Paulista
Na segunda metade da década de 1970, mais especificamente entre 1978 e 1980, a região do ABC paulista se tornou o epicentro de um novo ciclo de greves que mudaria a história do movimento sindical no Brasil. Diante da alta inflação, arrocho salarial e repressão do regime militar, os metalúrgicos das grandes montadoras como Volkswagen, Ford e Mercedes-Benz, decidiram cruzar os braços e parar de trabalhar.
Elas resultaram em aumentos salariais e na reorganização do sindicalismo no Brasil, além de impulsionar a criação de um novo partido voltado para a classe trabalhadora: o Partido dos Trabalhadores (PT). Lideradas por um sindicalista chamado Luiz Inácio Lula da Silva, as mobilizações do ABC pavimentaram o caminho para a redemocratização do país.
É importante destacar que em 1980, a maior greve de São Bernardo do Campo durou 41 dias, mobilizou cerca de 300 mil metalúrgicos e teve o apoio da população que arrecadava recursos e alimentos para os grevistas. Foi também neste ano que Lula foi preso sob a Lei de Segurança Nacional, mas não antes de fazer o suficiente para reforçar a importância dos sindicatos e enfraquecer ainda mais o regime autoritário, que chegaria ao fim em 1985, com a transição para a democracia e a eleição indireta de Tancredo Neves como presidente.
Como resultado das greves, o Novo Sindicalismo, que emergiu entre 1978 e 1980, foi decisivo para a reorganização do movimento trabalhista no Brasil. Esse período de intensa mobilização também levou à criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), em 1986 e outras conquistas importantes como a criação de novos modelos de mobilização sindical, reajustes salariais e o fortalecimento dos sindicatos como conhecemos hoje em dia.

Em 1978, Lula liderou a primeira grande greve operária em uma década, marcando o início do novo sindicalismo no Brasil. Foto: Reprodução
Aposentadoria, salário mínimo e seguro-desemprego
A regulamentação das relações de trabalho no Brasil foi um processo gradual, impulsionado pelas mobilizações operárias e pela necessidade de estabelecer uma estrutura econômica mais estável. Três pilares fundamentais desse processo foram a criação da aposentadoria, a fixação de um salário mínimo e, no futuro, a implementação do seguro-desemprego. Juntos, esses elementos consolidaram a base do trabalho formal e CLT como conhecemos hoje.
A aposentadoria brasileira
A aposentadoria no Brasil começou a ser debatida no início do século XX, impulsionada pela urbanização e pelo crescimento industrial. O primeiro marco legal foi a Lei Eloy Chaves, de 1923, que criou as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) para ferroviários. O sistema se expandiu e, em 1933, o governo de Getúlio Vargas instituiu os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) para diferentes categorias. Esses órgãos foram a base para a criação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que centralizou a previdência no país.
Hoje, a aposentadoria brasileira é formada pela coleta de um imposto a cada pagamento formal, além de uma série de regras que foram atualizadas pela Reforma da Previdência em 2019:
- A idade mínima para mulheres é de 59 anos e para homens, 64 anos.
- O tempo mínimo de contribuição é de 30 anos para mulheres e 35 anos para homens.
- Com a reforma mais recente, agora existe um período de transição de “pedágio” para as pessoas que estavam próximas de se aposentar na data de aprovação da lei.

O INSS tem 23,5 milhões de aposentados no país. Desse total, 12,1 milhões são mulheres e 11,4 milhões, homens. Imagem: Jeane de Oliveira
Salário mínimo
A ideia do salário mínimo começou a ganhar força no Brasil no início do século XX, especialmente após a Greve Geral de 1917, que pressionou o governo a discutir direitos trabalhistas. Em 1936, um estudo da Comissão Nacional do Trabalho recomendou a criação do salário mínimo, que foi finalmente regulamentado em 1º de maio de 1940, durante o governo de Getúlio Vargas. Na época, foram fixados 14 valores diferentes, de acordo com o custo de vida de cada região do país.
Hoje, o salário mínimo continua sendo um indicador econômico fundamental, impactando não apenas os trabalhadores formais, mas também benefícios previdenciários, pensões e seguro-desemprego.

O governo federal fixou o salário mínimo a ser pago no país em 2025 no valor de R$1.518,00. Imagem: Divulgação
Seguro desemprego
Criado em 1986, durante o governo José Sarney, o seguro-desemprego surgiu como uma medida para enfrentar a crise econômica. Com a Constituição de 1988, tornou-se um direito garantido aos trabalhadores formais. O benefício oferece uma renda temporária para quem perde o emprego sem justa causa, podendo ser solicitado por trabalhadores com registro em carteira, contribuição ao FGTS e tempo mínimo de serviço antes da demissão.
A história dos direitos trabalhistas no Brasil é marcada por conquistas significativas, resultado de décadas de mobilização e resistência dos trabalhadores. Da Greve Geral de 1917 às greves do ABC na década de 1970, cada avanço foi resultado de lutas coletivas por melhores condições de trabalho, salários justos e segurança no emprego. No entanto, o cenário atual traz novas ameaças que colocam em risco muitas dessas conquistas, exigindo vigilância e mobilização contínuas.
No final de 2024, o movimento pelo fim da escala 6×1, modelo que prevê seis dias de trabalho para um de descanso, ganhou repercussão no cenário nacional. Amplamente usada no comércio e na indústria, a jornada é criticada pela redução do tempo de lazer e convívio familiar dos trabalhadores, impactando diretamente na qualidade de vida.
Mais do que nunca, é fundamental que sociedade, sindicatos e legisladores permaneçam atentos e atuantes na defesa dos direitos trabalhistas. Afinal, o Brasil tem um longo histórico de lutas e conquistas que não podem ser desfeitas por mudanças que beneficiam apenas uma parte da economia (ou da sociedade). A regulamentação do trabalho deve sempre ter como princípio a valorização do trabalhador, garantindo condições dignas e equilibradas para o desenvolvimento do país.
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