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Formiga: futebolista que mudou a história do futebol feminino no Brasil

A origem de uma trajetória solitária nos números, mas coletiva na luta. Você não vai entender o futebol feminino sem conhecer Formiga
24/03/2025 | 23h59
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Por Leila Cangussu

Salvador, 1978: uma menina descalça e um campo de barro.

Você já deve ter escutado que a história do futebol feminino no Brasil é marcada por apagamentos, preconceitos e resistência. Mas talvez não tenha percebido que a trajetória da Formiga, futebolista, resume tudo isso.

Nascida em Salvador, em 1978, Miraildes Maciel Mota enfrentou desde cedo a realidade que milhares de meninas enfrentam no Brasil: talento reprimido por machismo, violência doméstica e a ausência de estrutura para o esporte.

No subúrbio ferroviário de Salvador, Formiga começou chutando cabeças de boneca como se fossem bolas. Jogava descalça, em campinhos de barro, entre meninos mais velhos que ela. O apelido veio nessa época. Um torcedor, vendo aquela menina franzina correr o campo inteiro sem parar, comentou que ela parecia uma formiguinha.

O nome pegou. Já a carreira… Essa não parou mais.

A primeira convocação para a Seleção Brasileira Feminina de Futebol

Aos 12 anos, incentivada pela mãe, Celeste, Formiga entrou para uma escolinha de futebol. Aos 15, já era revelação no Campeonato Brasileiro e, um ano depois, estreou na seleção brasileira feminina de futebol.

Era 1995 e o futebol feminino acabava de ser oficialmente reconhecido pela FIFA. Enquanto a maioria dos países ainda se recusava a tratar o futebol feminino com seriedade, o Brasil colocava em campo uma adolescente negra, baiana e resistente.

Sua estreia aconteceu na Copa do Mundo de 1995. Ela começou no banco, mas o talento chamou atenção. Na mesma competição, enfrentou Pia Sundhage, então jogadora da seleção sueca e ex-técnica da seleção brasileira. Foi o início de uma longa jornada.

Copa de 1995 na Suécia: Meg, Elane, Pretinha, Sissi, Formiga, Roseli, Michael Jackson, Kátia Cilene e Tânia Maranhão. No comando, Ademar Fonseca. Foto: reprodução

Copa de 1995 na Suécia: Meg, Elane, Pretinha, Sissi, Formiga, Roseli, Michael Jackson, Kátia Cilene e Tânia Maranhão. No comando, Ademar Fonseca. Foto: reprodução

Sete Copas. Sete Olimpíadas. Uma só camisa.

A história da Formiga futebolista é feita de números inacreditáveis. É a única atleta da história — entre homens e mulheres — a disputar sete Copas do Mundo Femininas: 1995, 1999, 2003, 2007, 2011, 2015 e 2019. Também é a única a ter participado de todas as primeiras sete edições do futebol feminino nas Olimpíadas: 1996, 2000, 2004, 2008, 2012, 2016 e 2020.

Um recorde que ninguém, em nenhum gênero, superou.

Além disso, é a jogadora com mais partidas pela seleção brasileira feminina de futebol: mais de 160 jogos, ultrapassando até o lateral Cafu. Aos 43 anos, tornou-se também a mais velha a disputar uma Copa e uma Olimpíada, além de ser a jogadora mais velha a marcar um gol em Mundiais.

Os jogos que marcaram a carreira de futebolista de Formiga

  • Gols em Copas do Mundo: Austrália (2007) e Coreia do Sul (2011)
  • Gols em Olimpíadas: dois contra o México (2004) e um contra a Alemanha (2008)
  • Último jogo pela seleção: vitória de 6 a 1 sobre a Índia, em 2021, com a braçadeira de capitã

Clubes pelo mundo: do subúrbio de Salvador à elite europeia

Formiga futebolista não ficou restrita à seleção brasileira feminina de futebol. A história dela também foi construída em campos de clubes importantes, no Brasil e no exterior. Da várzea de Salvador, onde começou descalça, ela passou a vestir a camisa de equipes de elite na Europa e nos Estados Unidos.

Jogou no São Paulo, Santos, Saad, Botucatu, Palmeiras e São José no futebol brasileiro. Atuou pelo Malmö FF, da Suécia. Fez parte de times como New Jersey Wildcats, Chicago Red Stars e FC Gold Pride nos Estados Unidos. E viveu uma fase marcante no Paris Saint-Germain, entre 2017 e 2021.

Aos 42 anos, Formiga renovava com o PSG até junho de 2021. Capitã, com 7 Copas e 6 Olimpíadas no currículo, ela seguia fazendo história — inclusive como a jogadora mais velha a marcar na Champions League e em Copas do Mundo. Foto: PA Images

Aos 42 anos, Formiga renovava com o PSG até junho de 2021. Capitã, com 7 Copas e 6 Olimpíadas no currículo, ela seguia fazendo história — inclusive como a jogadora mais velha a marcar na Champions League e em Copas do Mundo. Foto: PA Images

No PSG, ajudou o time a quebrar a hegemonia do Lyon e levantou o título do Campeonato Francês 2020–21. Antes disso, fez história com o São José-SP, onde foi tricampeã da Libertadores, bicampeã da Copa do Brasil e campeã mundial de clubes em 2014, em um torneio realizado no Japão que reuniu campeões continentais.

Títulos nos clubes

  • Libertadores da América de Futebol Feminino: 2011, 2013, 2014 (São José)
  • Copa do Brasil de Futebol Feminino: 2012, 2013 (São José)
  • Campeonato Francês: 2020–21 (Paris Saint-Germain)
  • Copa da França: 2017–18 (Paris Saint-Germain)
  • Campeonato Paulista de Futebol Feminino: 1997, 1999 (São Paulo); 2008 (Botucatu); 2012, 2014, 2015 (São José)

Aos 43 anos, Formiga ainda era titular

No futebol, o tempo costuma cobrar. Com Formiga, a lógica foi outra. Enquanto muitos atletas diminuem a intensidade para prolongar a carreira, ela manteve o ritmo alto.

Aos 43 anos, seguia como titular — tanto na seleção brasileira feminina de futebol quanto no PSG. Era uma jogadora ativa, presente, com números que chamavam a atenção mesmo em um grupo com atletas mais jovens.

Segundo dados da comissão técnica, Formiga percorria, em média, mais de 10 km por jogo. Dava carrinho, cobria espaços, ganhava divididas no meio de campo e segurava o jogo quando a pressão aumentava. Era a operária silenciosa, aquela que fazia o time funcionar mesmo quando não aparecia nas estatísticas mais visíveis.

Chegou a se despedir da seleção em 2016, mas voltou em 2018 a pedido do técnico Vadão, que não encontrava outra atleta com o mesmo impacto. No PSG, também foi titular até o fim. Dividia treinos com jogadoras de 20 anos e mantinha o mesmo nível físico e técnico. Resistência, leitura de jogo e consistência: esses eram os pilares do seu desempenho, mesmo depois dos 40.

Aos 43 anos, Formiga seguia como titular, com fôlego e regularidade acima da média — mesmo diante de uma nova geração em campo. Foto: Maxi Franzoi/AGIF

Aos 43 anos, Formiga seguia como titular, com fôlego e regularidade acima da média — mesmo diante de uma nova geração em campo. Foto: Maxi Franzoi/AGIF

No São Paulo, clube onde começou a carreira profissional, Formiga foi além da função tática. Virou referência para o elenco, para as categorias de base e para a própria história do time. Participou da reconstrução do time feminino e fez parte da nova fase do clube, voltado a investir no futebol das mulheres.

A relação com o Tricolor paulista foi simbólica: começou ali nos anos 90, ainda com estrutura precária, e voltou em 2021, agora com protagonismo, reconhecimento e torcida presente.

O racismo, o machismo e a desigualdade: o jogo fora de campo

O futebol nunca foi só bola para Formiga. Desde os primeiros chutes no subúrbio de Salvador, a violência fez parte da sua trajetória.

Dentro de casa, apanhava do irmão por insistir em jogar com os meninos. Nas arquibancadas, escutava insultos racistas enquanto representava o Brasil. Foi chamada de “macaca” por um torcedor durante um jogo. Não revidou com raiva. Pediu para tirar uma foto com ele e disse que emoldurasse aquela imagem como lembrança do que não se deve repetir.

Formiga encarou o futebol com um peso que muitos não carregam: mulher, negra, nordestina e jogadora. Não teve estrutura, incentivo, mídia ou apoio institucional no começo. Teve que insistir, ano após ano, para conquistar espaços onde jamais lhe prometeram nada. E mesmo quando chegou ao topo, nunca esqueceu o que enfrentou no caminho.

Em 15 de março de 2022, aos 44 anos e com 26 de Seleção, Formiga entrou para a Calçada da Fama do Mineirão — ao lado de lendas do futebol brasileiro. Foto: Pedro Vilela/Mineirão/Agência i7

Em 15 de março de 2022, aos 44 anos e com 26 de Seleção, Formiga entrou para a Calçada da Fama do Mineirão — ao lado de lendas do futebol brasileiro. Foto: Pedro Vilela/Mineirão/Agência i7

Formiga se posicionou de forma clara, direta e constante. Questionou a desigualdade salarial, a falta de investimento, a ausência de categorias de base e a falta de técnicas mulheres. Sempre falou sobre como o racismo atravessa a carreira de atletas negras no futebol feminino e defendeu que mudanças estruturais precisam de política, não só de performance.

Formiga se posicionou. Falou por ela e por todas as outras

Em 2016, Formiga anunciou sua aposentadoria da seleção brasileira feminina de futebol. Mas voltou no ano seguinte. Não porque sentiu saudade. Voltou porque entendeu que sua presença era necessária.

Junto com outras atletas, protestou contra a demissão de Emily Lima, a primeira mulher a treinar a Seleção. Expôs os bastidores. Disse que a decisão da CBF era mais uma prova do descaso com o futebol das mulheres.

Sua volta foi política. Usou sua imagem e sua trajetória para fortalecer o debate sobre equidade, investimento de base e visibilidade para o futebol feminino. Formiga não usou sua visibilidade para autopromoção. Preferiu influenciar o debate sobre políticas públicas para o futebol feminino: propôs caminhos. Falou de centros de formação, de acesso e de planejamento a longo prazo.

Medalhas, taças e ausência em premiações

Você talvez não saiba, mas Formiga nunca ganhou uma Bola de Ouro. Também nunca foi a protagonista das campanhas publicitárias. Diferente de Marta, Cristiane ou outras jogadoras midiáticas, ela seguiu outro caminho.

A ausência de premiações revela uma escolha da própria jogadora. Formiga sempre foi a mestra dos passes, a que colocava as companheiras na cara do gol. Não fazia gol de placa. Fazia cobertura. Tinha leitura de jogo. O tipo de jogadora que todo técnico quer e que todo time precisa. A bola passava, a jogadora não. Esse era seu estilo.

Conquistas pela Seleção Brasileira:

  • Jogos Pan-Americanos: ouro (2003, 2007, 2015), prata (2011)
  • Olimpíadas: prata (2004, 2008)
  • Copa do Mundo: vice-campeã (2007), bronze (1999)
  • Copa América Feminina: 1995, 1998, 2003, 2010, 2014, 2018

O fim de uma era: aposentadoria aos 44 anos

Em dezembro de 2022, Formiga anunciou sua aposentadoria do futebol profissional. Foi no São Paulo, o clube onde começou, que ela encerrou a trajetória. Um ciclo que começou no fim dos anos 1990 e se encerrou no mesmo lugar, 30 anos depois. Não por acaso.

Pela Seleção Brasileira, a despedida aconteceu antes do fim da carreira nos clubes. Foi em 2021, num amistoso contra a Índia, na Arena da Amazônia. Formiga entrou aos 32 minutos do segundo tempo, usando a braçadeira de capitã. Saiu ovacionada.

Na ocasião, Marta, Pelé, Megan Rapinoe, Carli Lloyd e Christine Sinclair fizeram questão de prestar homenagem. Era o fim simbólico de um ciclo histórico: a única atleta do mundo a disputar todas as Copas do Mundo e Olimpíadas desde que o futebol feminino passou a integrar essas competições.

O que vem depois do campo: visibilidade, resistência e liberdade

Formiga conhece o peso que carrega. Depois de décadas enfrentando o preconceito, ela quer continuar onde ainda há barreiras: na linha de frente. Já declarou que pretende ocupar espaços que historicamente excluíram mulheres.

Na entrevista em que afirma “sou mulher, preta, lésbica. É bingo”, ela deixa claro que sua trajetória não gira em torno de aceitação. É sobre existir com autonomia. Dentro de campo, respondeu ao racismo com inteligência e entrega. Fora dele, segue apontando as desigualdades que atravessam o futebol feminino.

A ideia não é simbolizar nada — é intervir, provocar mudança, exigir estrutura. Apanhou por jogar bola, escondeu quem era para sobreviver, ouviu ofensas mesmo vestindo a camisa da seleção. Não recuou.

Formiga, a futebolista, dava suporte e fôlego ao time em campo. Agora, quer garantir que outras meninas negras, periféricas e lésbicas não precisem atravessar a mesma solidão.

A aposentadoria marca o fim de uma fase. A luta, ela segue jogando.

O jogo continua, mas de outro jeito

Formiga, futebolista que desafiou estatísticas e estruturas, agora faz parte do PECS. Um programa que fala de esporte sem separar corpo, mente e contexto social. A maior futebolista da história segue jogando — agora, ao lado de quem quer entender o esporte como força de transformação.

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