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Inclusão digital no Brasil: uma necessidade

No Brasil, 156 milhões de pessoas se conectaram à internet em 2023. Mas nem todo mundo que acessa o mundo digital pode ser considerado de fato incluído.
14/08/2024 | 10h13

Por Iago Filgueiras*

A inclusão digital no Brasil tem ganhado cada vez mais espaço no debate sobre cidadania e acesso à informação. Dados da pesquisa TIC Domicílios 2023, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostram que no último ano cerca de 156 milhões de pessoas se conectaram à internet no país.

A pesquisa revelou também que o nível de conectividade sofre variações expressivas de acordo com a renda. Entre os mais ricos, o acesso à internet chega a quase 100%, já entre as classes D e E, 69%. O mesmo estudo apontou que entre os domicílios com renda igual ou inferior a um salário mínimo, 24% acessam a internet através do compartilhamento da rede com seus vizinhos.

Outro dado relevante apresentado pelo levantamento é de que 58% das pessoas conectadas fazem o uso da internet apenas pelo telefone celular, sendo a maior parte dessa população composta por mulheres, pessoas pretas e das classes D e E. O número de usuários que utilizam a internet para confirmar uma informação foi de apenas 37% para quem usa apenas o celular. Entre as pessoas que dispõem também de computador, chegou a 71%.

representação da experiência do usuário em dispositivos móveis

Foto: Freepik

Com o avanço da tecnologia, o mundo digital tem feito parte da vida de cada vez mais brasileiros. Se por um lado especialistas alertam que o uso em excesso pode gerar problemas como a dependência digital, por outro, a dificuldade de acesso à tecnologia,  produz um efeito que deve ser combatido: a exclusão digital.

Quando se pensa em inclusão digital, é importante considerar que não basta apenas garantir o acesso à internet. Uma pessoa digitalmente incluída deve ser capaz de acessar a informação disponível online, interpretá-la e transformá-la em conhecimento. Dessa forma, esse acesso pode produzir efeitos diretos na qualidade de vida do cidadão.

Por isso, é necessário que em uma sociedade que preza pela inclusão, o ambiente digital não se torne uma ferramenta de segregação e dificuldade de acesso à direitos. Assim, políticas públicas que levem em consideração o perfil socioeconômico e populacional se mostram essenciais para uma inclusão digital efetiva.Neste texto, abordaremos as dificuldades da inclusão digital no Brasil, passando pelos aspectos socioeconômicos que representam um entrave na sua promoção e como o aumento do número de usuários online pode impactar na soberania nacional. Continue a leitura.

Conectividade significativa

Os números apresentados anteriormente trazem luz sobre a qualidade do tipo de acesso. Em 2019, discussões realizadas pela Aliança para a Internet Acessível (A4AI), da Web Foundation, cunharam o conceito de “conectividade significativa”, que se refere às condições disponibilizadas aos cidadãos para que eles possam de fato serem incluídos no mundo digital. Para isso, foram definidos quatro parâmetros essenciais:

  • Acesso regular à internet;
  • Uso de aparelhos apropriados;
  • Disponibilidade de conexão ilimitada;
  • Acesso à internet de alta velocidade.

Em uma entrevista realizada pelo portal especializado em telecomunicações, Teletime, a advogada e especialista em política e regulação da tecnologia e das comunicações, Nathalia Foditsch, afirmou que dados sobre a qualidade do acesso à internet são fundamentais para a elaboração de políticas públicas efetivas. “Há grande parte da população mundial que acessa a internet sem ter dados suficientes para o mês inteiro, ou com velocidades aquém do necessário, ou tendo que compartilhar dispositivo”, afirmou.

A relevância da “conectividade significativa” é tanta, que o tema está entre os objetivos da Agenda 2030, um plano global elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e assinado por 193 países, para garantir o desenvolvimento sustentável e a prosperidade dos povos ao redor do mundo.

Quem é digitalmente incluído?

Uma pesquisa intitulada “A Geografia Digital no Brasil: Um Panorama das Desigualdades Regionais” e conduzida pela professora Marta Arretche, trouxe uma abordagem interessante sobre a inclusão digital.

A pesquisa aponta que os cidadãos podem ser categorizados de duas formas de acordo com o seu nível de engajamento, isto é, as possibilidades de uso que a internet lhes proporciona:

  • Cidadãos de primeira classe: são as pessoas que conseguem acessar a internet de forma ilimitada, realizam atividades complexas e conseguem obter benefícios, como uma entrevista de emprego, por exemplo;
  • Cidadãos de segunda classe: são os que fazem uso da internet através de ferramentas limitadas, como os celulares e conexão discada, para acessar principalmente as redes sociais.

Para medir o nível de engajamento, o estudo elencou 16 atividades realizadas online, como emitir um documento, ler notícias, fazer um curso, entre outros. Os usuários de intenso engajamento foram definidos como aqueles que realizaram pelo menos 8 das atividades elencadas. Nesse sentido, a existência de uma conexão de alto nível, como a internet banda larga, se mostrou fundamental para o acesso às atividades.

A pesquisa identificou que os usuários de primeira classe são minoria e a distribuição pelo território nacional não é homogênea. Considerando a internet como um bem coletivo, o acesso a conexão depende necessariamente da sua oferta, por isso é fundamental entender que a distinção entre os usuários de primeira e segunda classe, tem relação direta com a desigualdade social no mundo material.

Plano Nacional de Inclusão Digital

Na esteira dos objetivos do desenvolvimento sustentável, o governo federal criou via decreto em 2023, um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), que será responsável pela produção de insumos para a elaboração do Plano Nacional de Inclusão Digital. Para isso, o GTI conta com a participação do Ministério das Comunicações (MCom) e da Casa Civil.

O decreto estabelece que os os insumos devem contemplar a inclusão digital como um aspecto importante para o desenvolvimento socioeconômico, a conectividade universal e o letramento digital. Além disso, deve ser levado em consideração o perfil populacional e socioeconômico da população brasileira, o impacto da inclusão digital na prestação de serviços públicos, as habilidades digitais mínimas para o pleno exercício da cidadania e a preservação da pluralidade e diversidade em nossa sociedade.

Inclusão digital nas escolas

O desenvolvimento de uma sociedade digitalmente incluída passa também pela aplicação das tecnologias digitais no processo de ensino-aprendizado. Sejam pelas demandas do mercado de trabalho ou pela possibilidade de acesso a uma ampla gama de conteúdos, cada vez mais fica evidente a necessidade da disponibilização de acesso à internet nas escolas do país.

Em janeiro de 2023, foi aprovada a Política Nacional de Educação Digital (LEI Nº 14.533/23), que tem como objetivo central estabelecer diretrizes e metas para promover o uso das tecnologias digitais no ensino. Para isso, ela se baseia em quatro eixos principais:

  • Inclusão digital: visa promover a educação digital, para isso estabelece a necessidade de implantação de infraestrutura e o ensino para que o acesso seja universalizado;
  •  Educação digital escolar: tem como objetivo garantir a inserção da educação digital nos ambientes escolares, através do estímulo ao letramento digital, conhecimento sobre programação e pensamento computacional, em todos os níveis de escolaridade;
  • Capacitação e especialização digital: busca promover a capacitação da população brasileira, fornecendo oportunidades para o desenvolvimento de capacidades digitais, visando o acesso ao mercado de trabalho;
  • Pesquisa e desenvolvimento em Tecnologias da Informação e Comunicação: busca assegurar condições para a produção de novos conhecimentos e tecnologias acessíveis voltadas para a inclusão digital.

No entanto, é preciso ter em mente que o ensino, assim como diversos outros aspectos da sociedade, é marcado profundamente pela desigualdade. Nas escolas brasileiras, por exemplo, 49% dos alunos pardos e 50% dos alunos negros possuem acesso a computador ou internet. Já entre os alunos brancos, o número chega a 57%. Os dados são de um levantamento realizado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa Insper.

estudante negro acessando a internet através de um tablet

Foto: Freepik

Uma outra pesquisa, realizada pelo Cetic.br, aponta que as regiões cujas escolas possuem as maiores velocidades de conexão à internet, são a centro-oeste e a sudeste. Além disso, nas zonas classificadas como rurais, 51% das escolas têm uma conexão inferior a 50 MBps, já no perímetro urbano, o valor chega a 33%.

Se levarmos em consideração as escolas particulares, 51% das instituições possuem uma velocidade de conexão superior a 51 Mbps, no entanto, apenas 35% das escolas públicas têm o mesmo tipo de conexão.

Acessibilidade na inclusão digital

O debate sobre inclusão digital deve levar em consideração as amplas formas de desigualdade que existem no Brasil. Por isso, é importante que o assunto se estenda para além da desigualdade econômica.

No país, cerca de 18 milhões de pessoas possuem algum tipo de deficiência, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É importante pensar que a experiência de acesso à tecnologia não é única e precisa contemplar diferentes realidades.

Você já passou por alguma dificuldade ao acessar um site? Seja por uma página que não carregou, um design nada intuitivo ou uma função indisponível? É bem provável que a resposta seja sim. Mas saiba que essa é a experiência diária de milhares de pessoas que precisam de algum tipo de acessibilidade para se conectar à internet.

Embora o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) estabeleça a obrigatoriedade da “acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente”, uma pesquisa da BigDataCorp avaliou 26,3 milhões de sites brasileiros e do total, apenas 2,9% foram aprovados em todos os testes de acessibilidade.

Nos últimos anos, muitas ferramentas para a promoção da acessibilidade no mundo digital foram criadas. Leitores de tela, adequação de cores para daltonismo e softwares para movimentação do display através de gestos são alguns dos exemplos de recursos que podem ser incorporados aos aplicativos e sites.

No âmbito governamental, sites de órgãos federais e estaduais contam com os recursos do VLibras, desenvolvido pelo Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (Lavid), vinculado ao Departamento de Informática da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Essa ferramenta permite a tradução de conteúdo digital como vídeos, áudios e textos, para a Língua Brasileira de Sinais (Libras) através de um intérprete digital que realiza os gestos de acordo com o conteúdo do portal.

A situação, no entanto, varia muito quando se pensa nos sites vinculados à esfera municipal. Em muitas cidades, principalmente no interior ou com baixo contingente populacional, ferramentas de acessibilidade são muito difíceis de serem encontradas.

Ferramentas gratuitas de acessibilidade digital

Abaixo elencamos alguns recursos que podem ser utilizados para tornar a experiência do acesso a internet mais acessível para pessoas com deficiência:

  • Handtalk: é um aplicativo que traduz conteúdos digitais em português para Libras;
  • Be my eyes: é um aplicativo que permite que pessoas com visão deem auxílio visual para pessoas cegas ou com visibilidade reduzida através de baixa visibilidade;
  • Enable Viacam: é um software que permite que usuário controle o cursor do mouse através de movimentos com a cabeça;
  • Big Launcher: é  um aplicativo que torna a interface dos smartphones mais acessível para pessoas com baixa visão.

Além das ferramentas mencionadas anteriormente, muitos sistemas operacionais possuem alguns recursos pré-instalados, que geralmente podem ser acessados na aba de configuração tanto de celulares, como de computadores.

Em smartphones, usuários de Android, podem ativar algumas funções, como a inversão de cores, facilitando o uso para pessoas com sensibilidade a luz ou dificuldades com a percepção de cores. Além disso, existem recursos que lêem determinado conteúdo na tela do aparelho, facilitando o uso de pessoas com algum grau de dificuldade para enxergar e até mesmo um assistente de voz, que permite que o usuário com alguma dificuldade motora ou baixa visão realize comandos através da fala.

Os computadores também contam com recursos de acessibilidade, no sistema Windows por exemplo, é possível utilizar a inversão de cores, realizar comandos por voz, ativar o recurso narração que permite que o usuário interaja com conteúdos sem o uso do mouse e outras funcionalidades.

Quase todos os sistemas operacionais usados cotidianamente dispõem de algum recurso nativo de acessibilidade, nos links a seguir você pode conferir mais algumas informações sobre outros sistemas:

Inclusão digital e soberania

Com o aumento do número de usuários e a consolidação da internet como uma ferramenta importante no acesso à informação e exercício da cidadania, o debate sobre o grande fluxo de dados produzidos por brasileiros nas plataformas digitais se torna fundamental.

imagem ilustrando o conceito de negócios digitais

Foto: Freepik

Com novas contas em redes sociais criadas a todo momento, dezenas de aplicativos instalados em cada aparelho e infinitos sites acessados diariamente, a quantidade de informações geradas pelos usuários se torna alvo de uma grande disputa. No Brasil, o relatório Digital 2024: Brazil, produzido por We Are Social e Meltwater, estimou que existem cerca de 144 milhões de contas ativas em redes sociais.

A inteligência artificial, tema que ganhou muita relevância nos últimos anos e já está incorporada em diversas funcionalidades da navegação na web, utiliza os dados produzidos online para treinamento dos algoritmos que alimentam os modelos estatísticos e de aprendizado de máquina responsáveis pelo seu funcionamento.

As grandes empresas de inteligência artificial são, comumente, geridas total ou parcialmente pelas gigantes da tecnologia, as chamadas Big Techs. Essas empresas, em sua maioria, estão sediadas nos Estados Unidos, e armazenam os dados dos usuários em enormes data centers, o que frequentemente é chamado de armazenamento em nuvem.

O curioso é que essa nuvem não é um objeto suspenso que vaga no céu de acordo com o fluxo do ar. A nuvem tem endereço físico e o principal, ações negociadas na bolsa de valores. Os acionistas majoritários das grandes empresas de tecnologia, por exemplo, figuram entre as pessoas mais ricas do mundo.

Uma pesquisa realizada pela DE-CIX, em 2023, revelou que somente naquele ano 59 exabytes de dados foram trafegados na internet. A nível de comparação, seriam necessários 84 bilhões de CDs para armazenar a mesma quantidade.

O enorme volume de dados produzidos por brasileiros coloca o país como um agente central na produção de informações no mundo online. Porém, sem empresas e políticas públicas que garantam a soberania do conteúdo gerado, o país figura como um mero importador de ferramentas tecnológicas, desenvolvidas em sua maioria no hemisfério norte.

Ser digitalmente incluído não é apenas ter acesso a internet. É importante que todas as pessoas tenham direito a uma conexão digna, sem que aspectos socioeconômicos sejam motivo de segregação.  Somente assim, as pessoas poderão transformar a conexão em oportunidades e produzir efeitos práticos em sua qualidade de vida.

Para se aprofundar no debate sobre soberania digital, conheça a plataforma do ICL e tenha acesso ao curso “Soberania Digital: Um Novo Cenário Internacional”, com Fernando Horta.

 

 

 

*Iago Filgueiras é estudante do 5º semestre do curso de Jornalismo da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM).
Texto supervisionado por Leila Cangussu, da equipe ICL Notícias. 

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