Não é de hoje que estamos vivendo uma crise silenciosa, praticamente invisível.
Ela não está estampada em manchetes de jornais, mas pode ser sentida na exaustão coletiva, nos corpos cansados e nas mentes saturadas.
A promessa de uma vida melhor, mais livre e autônoma, parece cada vez mais inalcançável.
Em pleno século 21, é cada vez mais difícil desconectar, descansar e simplesmente existir no ócio sem culpa. A verdade é que por trás dessa dinâmica está o sistema capitalista, que molda não apenas as relações de produção, mas também nossa própria relação com o tempo.
Vamos entender de onde vem a super produtividade incentivada pelo capitalismo moderno, como identificar burnout e qual é a relação entre tempo e capitalismo.
O que é o capitalismo?
O sistema capitalista é um modelo econômico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção, na acumulação de capital e na busca incessante pelo lucro.
Ele se consolidou na transição da Idade Média para a Modernidade, especialmente após a Revolução Industrial, quando o modo de produção capitalista passou a se expandir de forma agressiva.
Ao longo das diferentes fases do capitalismo, esse sistema reestruturou a sociedade, redefinindo valores, relações humanas e nossa maneira de perceber o tempo.
Entre os diversos pensadores que analisam criticamente o capitalismo, Karl Marx diz em sua obra “O Capital” que desvendou as engrenagens desse sistema, mostrando como ele aliena o trabalhador a se render ao tempo sem descanso e transforma todas as dimensões da vida em mercadoria.

Para Marx, o tempo de trabalho é a medida do valor das mercadorias. Imagem: divulgação
A relação do capitalismo, trabalho e tempo
Atualmente, no modo de produção capitalista, o tempo deixa de ser um elemento natural ou subjetivo e passa a ser uma medida rigorosa da produtividade.
É assim que a frase “tempo é dinheiro” nasceu.
Cada minuto conta, e cada segundo improdutivo representa uma perda. Em “O Capital”, Marx mostra como o valor da força de trabalho está atrelado ao tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la.
É aqui que ele determina que o tempo de vida do trabalhador é convertido em mais-valia, ou seja, o valor excedente produzido pelo trabalhador, mas apropriado pelo capitalista.
No capitalismo contemporâneo, marcado por uma nova fase hiperconectada, essa dinâmica se intensificou. As fronteiras entre vida pessoal e trabalho se esvaem. A promessa moderna de liberdade e autonomia parece cada vez mais distante diante da pressão constante por desempenho, das jornadas exaustivas e da dificuldade de desconectar — mesmo fora do expediente.
Com o crescimento do trabalho remoto, especialmente após a pandemia, esse fenômeno se tornou ainda mais evidente. Trabalhar de casa, em teoria, deveria proporcionar mais equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Na prática, muitas vezes isso significa estar permanentemente acessível, responder mensagens fora do horário e ter sua casa transformada em extensão do escritório. A promessa de flexibilidade é, muitas vezes, uma armadilha para uma jornada sem fim.
É nessa jornada exaustiva que o sistema capitalista nos convence de que devemos estar sempre fazendo algo “útil”. E descansar, muitas vezes, não entra nessa equação.

A ilustração critica a desigualdade gerada pelo sistema capitalista, onde poucos concentram a riqueza enquanto muitos enfrentam escassez. Imagem: Cristina Bernazzani
E.P. Thompson e a teoria do tempo medido
O historiador britânico E.P. Thompson, em seu ensaio “Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism”, oferece uma contribuição fundamental para entender essa transformação.
Ele mostra em sua pesquisa como, com o avanço do modo de produção capitalista, surge uma nova forma de tempo. A organização tradicional e comunitária do tempo, baseada nos ritmos naturais da vida e nas necessidades sociais, é substituída por uma noção linear, homogênea e controlada.
Mais especificamente, foi a partir das fases do capitalismo industrial que o tempo passou a ser medido, cronometrado e fiscalizado. Foi nesse momento, por volta da Revolução Industrial, que pontualidade, eficiência e produtividade se tornaram virtudes.
Não por acaso, “viver bem” é cada vez mais sinônimo de “produzir mais”. O tempo é mercadoria, e seu valor depende do que se faz com ele. Descansar, contemplar ou simplesmente não fazer nada passa a ser visto como desperdício – de tempo.

Conhecido por sua crítica à noção capitalista de tempo, o historiador E. P. Thompson uma vez disse que “o tempo é agora moeda: não se gasta, apenas se investe”. Imagem: reprodução
Descanso é luxo?
No cerne do sistema capitalista, o tempo não é um direito, é um recurso produtivo. O lazer é monetizado, o descanso é condicionado à produtividade anterior, e o ócio é quase um pecado.
A lógica do desempenho nos acompanha mesmo nos momentos que deveriam ser de pausa. Relaxar agora tem até outro nome. Nos Estados Unidos, um termo famoso para isso é o “Netflix and chill” — que, inclusive, vira uma nova forma de consumo.
Hoje em dia parece que tudo tem um viés e o descanso não pode ser mais protagonismo de ação (ou não ação). A viagem de férias vira conteúdo para as redes sociais. O tempo livre vira tempo para gastar dinheiro, consumir bens e girar a roda do capitalismo.
Mas a questão que fica é: o que o capitalismo fez com o nosso tempo?
Transformou a vida em uma corrida sem fim. A pressão pela produtividade invadiu os espaços mais íntimos. A sensação de culpa ao não fazer nada, de não estar sendo útil, é resultado direto da internalização da lógica capitalista. Mesmo atividades consideradas prazerosas ganham um viés competitivo e enraizado de culpa.
O pensador marxista Mark Fisher, em seu livro “Realismo Capitalista”, fala sobre como o sistema capitalista se tornou tão onipresente que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Essa naturalização também afeta nossa percepção do tempo. Não conseguimos mais conceber uma existência fora da pressão por rendimento. E, assim, o descanso se torna, sim, um privilégio.

A charge destaca o valor do descanso em uma sociedade que supervaloriza o trabalho – uma crítica direta à lógica produtivista do sistema capitalista. Imagem: Thiago Lucas
A necessidade do ócio e saúde mental
Resgatar o ócio como direito e necessidade é um ato de resistência.
O tempo não produtivo é fundamental para a saúde mental e emocional. Em uma sociedade marcada por burnout, ansiedade e depressão, falar sobre descanso é urgente.
Por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é a principal causa de incapacidade em todo o mundo, afetando mais de 300 milhões de pessoas. E só no Brasil, dados de 2022 da International Stress Management Association (ISMA-BR) apontam que cerca de 30% dos trabalhadores sofrem de burnout.
O sistema capitalista não prevê pausas e não admite fraquezas.
O ócio criativo, o lazer sem culpa, a desconexão da internet — tudo isso precisa ser reivindicado como parte de uma vida plena. A ideia de que é preciso merecer o descanso é uma armadilha.
A vida não pode ser uma eterna prova de merecimento. Precisamos pensar em alternativas à lógica de desempenho, e isso passa por questionar as próprias bases do modo de produção capitalista.

Permitir-se pausar é um gesto de autocuidado. Em um mundo que exige produtividade constante, o descanso se torna uma forma radical de resistência. Foto: reprodução
A alta do burnout
Muito falado, mas pouco explicado, o burnout é um distúrbio psíquico caracterizado por exaustão emocional, sensação de ineficácia e distanciamento do trabalho.
Em 2022, a Organização Mundial da Saúde passou a reconhecê-lo oficialmente como uma síndrome relacionada ao trabalho e incluiu o burnout na CID-11 da OMS. Os sintomas podem incluir cansaço extremo, insônia, dificuldade de concentração, dores no corpo, irritabilidade e sentimentos de desesperança.
Olhando para o Brasil, um levantamento da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT) indica que cerca de 30% das pessoas ocupadas no Brasil sofrem com a síndrome de burnout. Esse número, inclusive, posiciona o país em segundo lugar no ranking mundial de doenças ocupacionais.
Identificar esses sinais precocemente é essencial para evitar agravamentos. E em seguida, buscar apoio profissional é o primeiro passo: psicólogos e psiquiatras podem ajudar com diagnóstico e tratamento.
Além disso, iniciativas de autocuidado como pausas regulares, delimitação de horários e espaços de escuta também são fundamentais. Afinal, hoje em dia a busca por saúde mental também é uma busca por tempo – mesmo que dentro da lógica das atuais fases do capitalismo, seja constantemente negado. É preciso recuperá-lo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que cerca de 5,8% da população brasileira convive com depressão, a maior prevalência na América Latina. Imagem: divulgação
Vivemos em uma época em que todos dizem querer mais tempo — tempo para o filho, para a família, para descansar, para cuidar da saúde, para viver.
Mas a grande ironia do sistema capitalista é que, quanto mais corremos atrás desse tempo, mais ele nos escapa.
A promessa de liberdade por meio da produtividade é, na verdade, uma prisão disfarçada: o tempo que ganhamos com tecnologias, flexibilizações e avanços, logo é engolido por novas tarefas, novas cobranças e um novo ritmo de aceleração que parece não ter escapatória.
A cada dia, o tempo vira mercadoria. Fragmentado em agendas, reuniões, notificações e metas. E nessa busca incessante por render mais, por “ganhar tempo”, perdemos o essencial: o direito de simplesmente vivê-lo.
A verdade é que ninguém está realmente vivendo se todo o tempo é gasto tentando ser eficiente. Isso porque com o avanço do capitalismo veio a nova constituição de medida do tempo, mas desaprendemos a senti-lo. E talvez seja justamente nesse resgate — do tempo sentido, vivido, compartilhado — que esteja o primeiro passo para uma existência mais humana.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreveu em sua obra “Sociedade do Cansaço” a denúncia da aceleração compulsiva da vida contemporânea como uma forma de opressão. Para ele, a lógica capitalista nos transforma em sujeitos do desempenho, sempre esgotados, e propõe a desaceleração, a contemplação e o ócio como formas de resistência.
Desacelerar, nesse contexto, não é atraso. É rebeldia.
É reconquistar um tempo que nos pertence, mas que o sistema insiste em roubar.
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