ICL Notícias

Por Ana Cristina Campos (Agência Brasil) e Bernardo Cotrim (ICL Notícias)

Um ato em frente ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, reivindica neste sábado (11) a necessidade de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) do local para instalar ali um centro de memória e resistência contra os regimes de exceção.

A manifestação foi em memória de Rubens Paiva e de outros 52 mortos ou desaparecidos por ação direta dos agentes do Destacamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio de Janeiro  que funcionava no quartel na Tijuca. Na Praça Lamartine Babo, está instalado o busto de Rubens Paiva, inaugurado em 12 de setembro de 2014, pelo Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio e pela Comissão Estadual da Verdade.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Grupo Tortura Nunca Mais RJ e a ONG Rio de Paz se uniram para realizar o ato com apoio da Justiça Global e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia Núcleo-RJ.

Presente ao ato, o historiador João Pedro Timóteo, que pesquisa a ditadura militar, explica a relevância da moblização. “É muito importante relembrar aqueles que foram presos, torturados, assassinados aqui, mas também para fazer a ponte com as contínuas violações de direitos fundamentais que nós vivemos até hoje. Isso acontece na esteira do importante filme do Valter Sales e que com a a vitória do Globo de Ouro coloca para a sociedade brasileira esse debate que nós tínhamos de ter feito há muito tempo já”.

Mobilização pediu tombamento do quartel

A jornalista Graça Lago falou da simbologia do ato. “Tombar esse prédio ´é importante para a memória do país, para a busca da justiça e da verdade. Assim como é a preservação do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro que está literalmente às traças com mais de quatro mil metros  documentos sob risco. Então, nós temos um momento que todas essas lutas convergem, é a luta pela democracia, é a luta pela verdade, é a luta pela memória, é a luta cidadania perdida do país. Nós todos temos direito a isso”.

Ato foi “exercício militante”, diz Damous

Wadih Damous, secretário Nacional do Consumidor e ex-presidente da Comissão da Verdade no Rio de Janeiro intepretou a mobilização como “um exercício militante da memória”, por ser realizado em frente a um quartel emblemático da história do Brasil, onde dezenas de brasileiros e brasileiras foram mortos torturados e alguns desaparecidos.

Manifestantes fizaeram referência ao filme de Valter Sales. Rafael Henrique Brito/ONG Rio de Paz

“Esse quartel continua funcionando normalmente com as atividades cotidianas como se nada tivesse acontecido. Que essa dependência do Exército seja transformada num centro de memória, é uma reivindicação, uma exigência absolutamente justa. Porque o que fez prédio famoso, tristemente famoso foi o fato de ele ter sido um centro brutal de tortura, morte e desaparecimento forçado daqueles e daquelas que ousaram resistir à ditadura de 1964 aqui no Brasil”, diz Damous.

Ele reconhece que essa não foi uma agenda do movimento popular brasileiro e nem dos partidos, nem mesmo de esquerda. “Isso acaba de uma certa forma limitando a nossa luta.”, diz

O cineasta Silvio Tendler classificou o ato como “fundamental”. “É uma vergonha que esse quartel ainda não tenha virado um centro de memória como tantos que existem no mundo. O Brasil é o único país que resiste a conservar a sua memória”, lamenta Tendler. “Minha mãe esteve presa aqui e eu vim homenageá-la. Esteve presa na mesma época que o Rubens Paiva, é um absurdo que isso tenha acontecido e eles não queiram deixar registrar para a história, vamos lutar”

Cineasta Silvio Tendler

Segundo a ABI, a proposta de tombamento não visa ofender a instituição do Exército, mas contribuir para que as próprias Forças Armadas se abram para a perspectiva de rever os crimes praticados por seus agentes dentro de suas organizações militares, para que não se repitam nunca mais.

O ato teve a participação de ex-presos políticos que conseguiram sobreviver ao principal centro de prisão ilegal, tortura, morte e desaparecimento forçado instalado no estado do Rio de Janeiro no período do regime militar implantado pelo golpe de 1964. O DOI-Codi funcionou entre os anos de 1970 e 1979, dentro do 1º Batalhão de Polícia do Exército. Situado nos fundos do pátio do quartel, o prédio de dois andares do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) serviu de base para as suas operações, segundo relatório da Comissão Estadual da Verdade.

O fundador da Rio de Paz, Antonio Carlos Costa, disse que até hoje existem brasileiros que flertam com o regime militar. “Tombar esse quartel significa também nós darmos oportunidade para as nossas crianças e gerações futuras de tomarem conhecimento do que aconteceu aqui de modo que esse passado jamais retorne porque foi um período de trevas na história do nosso país. Período no qual o Estado usou de práticas fascistas a fim de supostamente preservar o país de uma ameaça comunista. O que nós esperamos é que nesse cenário de retorno desse debate, em razão do filme Ainda Estou Aqui, nós possamos vencer essa batalha. Queremos esse quartel para a promoção de uma cultura democrática no Brasil”.

Ainda Estou Aqui conta a história da família Paiva, que, em 1971, com o endurecimento da ditadura militar, precisa enfrentar o desaparecimento e assassinato de Rubens Paiva, engenheiro civil e político brasileiro. A história é contada do ponto de vista de quem fica, a esposa Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, que ganhou o Globo de Ouro por sua atuação.

O ex-preso político Álvaro Caldas, professor, escritor e sobrevivente do DOI-Codi, retornou ao local para participar do protesto. “Eu entrei nesse quartel quatro vezes. Duas vezes preso com capuz e outras duas vezes como membro da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer a vistoria lá dentro. Fui preso pela primeira vez em fevereiro de 1970, um ano antes do Rubens Paiva. Fui torturado como todos os presos que entravam aqui. Foram três meses aqui. Eu era militante político e fazia resistência à ditadura. Eu me sinto grato por ter podido sobreviver”.

Segundo o diretor do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Rafael Maul de Carvalho Costa, falar do tombamento do batalhão onde funcionou o DOI-Codi é falar da luta dos direitos humanos no Brasil, de familiares e de ex-presos políticos e falar das violências que continuam acontecendo até hoje. “O Brasil não superou a perspectiva do militarismo, das relações autoritárias tanto nas ameaças de golpe quanto nas políticas do cotidiano. O tombamento do DOI-Codi em espaço de memória é um passo para fortalecer a democracia, que não seja pactuada com a violência de Estado”.

Busto de Rubens Paiva, localizado na praça em frente ao quartel

De acordo com dados fornecidos pela Comissão Nacional da Verdade, do total de presos políticos que passaram pelas dependências do DOI-Codi do Rio, ao menos 53 foram mortos, dentre os quais 33 permanecem desaparecidos até a presente data. Relatório da Comissão Estadual da Verdade lista 163 mortos e desaparecidos só no estado do Rio. O DOI-Codi foi apenas um entre 19 locais usados pela repressão política como delegacias de polícia, quartéis e centros clandestinos de interrogatório e tortura de opositores do regime militar.

O DOI-Codi era subordinado ao então I Exército (hoje Comando Militar do Leste) e responsável por centralizar e coordenar a execução de ações repressivas, como a captura, o sequestro, a tortura, o assassinato e o desaparecimento de militantes de oposição à ditadura militar.

A partir de 1970, o 1º BPE abrigou o DOI-Codi ao mesmo tempo em que manteve seu funcionamento enquanto batalhão de polícia. Por isso, muitas vezes, nos testemunhos de ex-presos políticos, o local é referenciado como DOI-Codi ou Polícia do Exército (PE) da Barão de Mesquita.

A criação dos DOI-Codis foi resultado de uma política repressiva implantada pela ditadura militar no final da década de 1960 e início dos anos 1970 para eliminar as organizações de esquerda. Para tanto, os diversos órgãos militares e policiais, federais e estaduais passaram a atuar de forma conjunta e coordenada no combate à chamada subversão. Foram criados DOI-CODIs em diversos estados .

Desde 2013, o Ministério Público Federal (MPF) pede junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) pelo tombamento do prédio onde historicamente funcionou o DOI-Codi.

 

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