Quando o Estado espia a si mesmo
Como confiar num Estado que não confia nos seus quadros mais profissionalizados e de vínculos mais estáveis? Essa é a pergunta que paira sobre a crise que se instalou na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Em junho de 2025, servidores da carreira aprovaram indicativo de greve, denunciaram publicamente ingerência política, e acionaram a Justiça Federal para afastar o atual diretor-geral, Luiz Fernando Corrêa. Paralelamente, o Congresso convocou uma reunião sigilosa da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), alimentando ainda mais a sensação de que o país vive um colapso silencioso em sua estrutura de inteligência. A escolha recorrente de nomes externos — militares da reserva, delegados da Polícia Federal ou da Civil — para os cargos estratégicos da ABIN ignora a competência dos servidores concursados, relegando o corpo técnico à condição de espectador de sua própria instituição. A ausência de diálogo interno, combinada ao silêncio público do governo, fortalece a percepção de que a ABIN se tornou um bunker opaco — onde o interesse institucional foi substituído por conveniências políticas.
A crise da ABIN escancara uma oportunidade — talvez a última desta gestão — de reorganizar, com base democrática, uma das áreas mais sensíveis do Estado brasileiro. Ao manter a agência presa a uma lógica de aparelhamento e desconfiança interna, o governo Lula renuncia a uma promessa não verbalizada, mas esperada: a construção de uma inteligência de Estado que sirva à sociedade, e não ao poder do momento. Ignorar esse impasse é deixar o sistema de inteligência refém da lógica do improviso e da opacidade — dois venenos para qualquer democracia que se pretende sólida. A ABIN, se reformada com transparência, pode ser um dos pilares de confiança institucional no Brasil. Mas, se continuar a funcionar como território sem controle social, reforçará a desilusão cívica e o desencanto democrático que já avançam perigosamente.
Um retrato da crise: denúncias, tensão interna e desgaste institucional
A atual crise da ABIN alcançou um ponto crítico com o indiciamento do diretor-geral Luiz Fernando Corrêa pela Polícia Federal, acusado de omissão em apurações internas sobre o uso indevido do sistema de geolocalização FirstMile, além de envolvimento em práticas ilegais herdadas do governo anterior. As denúncias envolvem suspeitas de espionagem ilegal e desvio de finalidade institucional. Esse episódio expõe as fragilidades de uma agência que deveria operar com o mais alto padrão de integridade e vigilância legal, mas que vem sendo corroída por práticas pouco transparentes e escolhas políticas que subestimam a profissionalização dos seus quadros. Quando o líder máximo da inteligência de um país é investigado e indiciado, o alerta institucional deveria ser imediato. No entanto, a reação do governo foi marcada por silêncio e manutenção do status quo, o que somente agravou o desgaste interno e externo da instituição.

O atual diretor-geral da Agência Brasileira de Informações (Abin) Luiz Fernando Corrêa – Roque de Sá/Agência Senado
A manutenção de uma autoridade indiciada em um cargo de Diretor-Geral da “CIA brasileira” é, no mínimo, apoplética por três razões simples: indiciamento por obstrução de justiça em razão do próprio cargo; por ser um cargo chancelado pelo Senado Federal em sabatina e pelas consequências jurídicas, administrativas, políticas e internacionais (agências de inteligência que cooperam com a Abin e implicações no repasse de informações estratégicas).
Em paralelo ao indiciamento, os servidores de carreira da ABIN aprovaram um indicativo de greve e ingressaram com ação judicial para o afastamento do atual diretor-geral. O movimento, inédito, em 25 anos de Abin, não se trata de reivindicação salarial, mas de defesa da integridade da própria agência. Os servidores denunciam ingerência política, autoritarismo da gestão atual e o rebaixamento técnico da carreira — marcada por anos de estudo, concursos rigorosos e compromisso com a segurança nacional. Essa tensão é potencializada pela falta de interlocução com o governo e pela invisibilidade institucional a que foram submetidos. O gesto extremo da greve reflete a deterioração da confiança e a ruptura do pacto básico de funcionamento da administração pública: respeito aos profissionais concursados. Quando os pilares humanos de uma instituição se rebelam, o problema deixa de ser administrativo — torna-se estrutural e exige resposta política de alto nível.
A crise se aprofunda com a convocação de uma reunião secreta da CCAI para ouvir o diretor-geral indiciado. A própria opção pela sessão reservada já revela um conflito entre transparência e blindagem. Em vez de responder à sociedade, a inteligência brasileira se retrai para o silêncio institucional, frustrando expectativas democráticas de prestação de contas. O uso recorrente do sigilo, quando não há riscos iminentes à segurança nacional, enfraquece a credibilidade da agência e fomenta suspeitas legítimas sobre sua função. A ausência de controle externo efetivo e a dependência de decisões políticas para enfrentar crises internas configuram um cenário de vulnerabilidade. A ABIN, nesse retrato, deixa de ser símbolo de segurança para se tornar metáfora de um Estado que desconfia de si, silencia seus técnicos e flerta com a instabilidade funcional. Trata-se, portanto, de uma crise de comando e uma crise de legitimidade.
A ABIN e o déficit histórico de transparência
A ABIN é, provavelmente, o único órgão da República que não foi verdadeiramente redemocratizado após o fim da ditadura militar. Enquanto diversas instituições passaram por processos de revisão estrutural, simbólica e funcional, a inteligência de Estado foi rebatizada — do SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão de espionagem do regime militar brasileiro) para a ABIN — sem uma discussão profunda sobre sua missão, seus métodos e seu controle democrático. Não houve — e até hoje não há — um debate público sério sobre a refundação da atividade de inteligência no país, moldando-a aos parâmetros do Estado Democrático de Direito. Na prática, a ABIN ainda se move sob lógicas próprias, pouco permeáveis a mecanismos de controle externo e com baixa transparência sobre seu funcionamento. Essa opacidade sistêmica tem um custo institucional alto: afasta o controle social, favorece abusos e permite a captura política da máquina de vigilância.
Além disso, a Estratégia Nacional de Inteligência (Decreto 15 de novembro de 2017), documento de orientação estratégica decorrente da Política Nacional de Inteligência (PNI), perdeu sua validade em 2021 e, após 30 meses sob nova gestão, ainda não há sinais de interesse governamental em aproveitar a oportunidade para um debate mais ampliado sobre o arcabouço legal e normativo da atividade de inteligência.
Enquanto isso, as democracias consolidadas avançaram na institucionalização da inteligência sob regimes de controle cruzado, com comitês parlamentares robustos, auditorias externas e marcos legais claros. Nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Canadá, os órgãos de inteligência não somente prestam contas aos parlamentos, como são submetidos a análises periódicas sobre sua conformidade com os direitos fundamentais e o interesse público. No Brasil, a CCAI permanece fragilizada: não tem quadro técnico próprio, atua esporadicamente e suas reuniões, quando ocorrem, são muitas vezes secretas e inconclusivas. Essa disfuncionalidade legislativa, aliada à falta de protagonismo dos servidores de carreira na formulação da política de inteligência, mantém o país preso a uma herança autoritária. Democratizar a ABIN não é um detalhe técnico — é uma etapa necessária e inadiável de consolidação democrática e de proteção contra o uso indevido do Estado contra os próprios cidadãos.
O papel do governo Lula: entre a omissão e a oportunidade
Desde sua campanha, o presidente Lula prometeu reconstruir instituições, recompor a confiança na administração pública e recuperar a transparência como um pilar do Estado. No entanto, a condução da política de inteligência tem seguido um caminho inverso. A nomeação de Luiz Fernando Corrêa — um delegado da Polícia Federal ligado a governos anteriores e sem histórico de atuação no corpo técnico da ABIN — simboliza a manutenção de uma lógica ultrapassada, onde os principais cargos da agência são ocupados por nomes externos à sua carreira de Estado. O resultado disso está posto: uma crise institucional profunda, com um diretor-geral, chefe de gabinete e corregedor indiciados (todos delegados de polícia federal), servidores entrando em greve, ação judicial em curso e uma audiência secreta no Congresso que só aprofunda o déficit de transparência. O governo, até agora, tem se mantido omisso diante desse colapso anunciado, ignorando os sinais de que a ABIN precisa mais do que contenção de danos — precisa de reinvenção institucional.
Não é razoável, após 25 anos de criação, a Abin nunca ter sido dirigida por um diretor-geral concursado. O primeiro concurso para a carreira aconteceu em 1994, mesmo antes da criação de sua estrutura legal pela Lei 9883/99.
Essa crise, contudo, pode ser mais que um ponto de ruptura: pode ser a última chance de Lula iniciar um ciclo virtuoso na inteligência de Estado brasileira. O caminho está delineado: demissão do atual diretor-geral, reestruturação da governança da ABIN com protagonismo dos servidores concursados, abertura de diálogo com a sociedade civil, regulamentação efetiva das atividades de inteligência, definição clara dos seus limites constitucionais e legais, mecanismos transparentes de prestação de contas e responsabilização por abusos. O governo tem, nas mãos, a oportunidade histórica de fazer da inteligência um instrumento republicano, e não uma ferramenta opaca de vigilância e poder. Perder esse momento seria um erro político e um retrocesso institucional de proporções graves. A democracia exige vigilância — mas ela começa com o próprio Estado vigiando a si mesmo com regras claras, controles fortes e respeito aos direitos fundamentais.
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