Estamos atolados em um tempo marcado pela descrença. Os progressistas, em especial, se mostram desencantados diante do avanço das ideias reacionárias sobre muitos setores da sociedade: política, meio ambiente, segurança pública, educação, Justiça…
Parece que ninguém está a salvo da marcha dos retrógrados.
Agressivamente, eles investem sobre conquistas civilizatórias consumadas após décadas — algumas, até séculos — de luta. Os argumentos racionais são descartados em favor de teses sem pé nem cabeça, fabulações bizarras capazes de colocar em risco milhões de vidas, como o negacionismo da vacina.
Por isso, a cada dia mais gente se convence que se tornou inútil pensar, ler bons livros, debater, questionar-se a si e ao mundo.
Em um tempo em que Olavo de Carvalho, pastores caça-níqueis e Jair Bolsonaro influenciam tantos brasileiros, não se pode condenar aqueles que acreditam que as palavras perderam o valor.
Esses ajuntamentos de letrinhas publicados em papel ou em telas reluzentes foram, afinal, esvaziados do sentido que os deveria sustentar?
A vida real, complexa como sempre, nos mostra que também não é para tanto.
Um caso atual dá prova disso: o pronunciamento feito ontem pelo técnico Cuca.
Depois da vitória de 6 a 0 do Athlético PR sobre o Londrina, ele resolveu encarar publicamente o episódio trágico que marcou sua vida, em 1987. Falou sobre a anulação da condenação que recebeu por envolvimento no estupro de uma menina de 13 anos, na Suíça. A sentença foi anulada por problemas processuais, já que não houve julgamento do mérito. O caso foi encerrado.
Dessa vez, porém, Cuca não pareceu insensível ao drama da menina, que morreu alguns anos depois do estupro. Nas entrevistas anteriores, tinha se limitado a discordar que tivesse havido relação forçada, falou até em sexo consensual com uma vulnerável, mas disse que não tinha feito nada.
Ontem, o treinador mudou radicalmente a forma de tratar o assunto. Em tom emocionado e cuidadoso, deixou de colocar-se no centro dos fatos, como antes, e emitiu palavras que não pareciam sair de da boca de um “boleirão”, como ele próprio se definiu, mas de alguém que deixou de lado uma visão anacrônica da vida:
“O mundo do futebol ainda é um mundo de muito preconceito. Entendi que quando me cobram não é só sobre mim, é sobre a forma como tratamos as mulheres. Não estou falando isso como fala isolada para agradar alguém, ou da boca para fora. Se fosse assim teria me manifestado antes. Falo isso de coração.
Quero e me comprometo a fazer parte da transformação. Vou fazer isso com o poder da educação. Quero ajudar”.
Com essa fala, surpreendeu a todos, lançou luz sobre o grave problema da violência contra a mulher, colocou-se como aliado delas e pode mudar radicalmente sua imagem.
O que causou tamanha alteração de rota?
O próprio Cuca esclareceu esse ponto.
“No começo do ano li uma coluna da Milly Lacombe, da (sic) UOL, em que ela disse que isso não era sobre mim. Eu entendi o que ela quis dizer”, esclareceu.
Aí está: com suas palavras ao mesmo tempo corajosas, sensatas e sensíveis, a jornalista conseguiu atingir a alma do personagem que até pouco tempo a enxergava como inimiga.
As proposições de Milly Lacombe atravessaram o escudo do pensamento reacionário típico do “boleirão”, suplantaram a blindagem machista que predomina no esporte e balançaram as convicções de Cuca.
O episódio mostra na prática algo digno de nota: as palavras têm, sim, grande valor.
Para todos que acreditam na força das ideias, essa notícia é para ser comemorada. Em especial os jornalistas, que de uns tempos para cá parecem tão pessimistas com o efeito das palavras com que preenchem os noticiários e as colunas de opinião, deveriam ficar exultantes.
O colunista que escreve estas linhas teve a vida profundamente modificada pelos jornais e revistas que recolhia ainda criança nos lixos de um antigo depósito na zona Sul do Rio. Filho de um casal pobre, formado por uma empregada doméstica pernambucana e um garçom cearense, ambos sem educação formal, fui remodelado por aquelas palavras impressas, que me deram régua e compasso para desenhar uma trajetória diferente da prevista.
Por isso, nunca desacreditei do poder dos textos e das ideias.
Mas entendo o motivo pelo qual alguns colegas estão descrentes.
Aos jornalistas, políticos, militantes, acadêmicos e cidadãos em geral, o efeito da argumentação de Milly Lacombe sobre Cuca leva a uma conclusão revigorante no meio dessa crise de racionalidade: nunca duvidemos do poder das palavras e da inteligência.
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