Hoje completam-se três dias desde que uma ministra da República brasileira, Marina Silva, foi instada a “colocar-se no seu lugar”. Uma expressão que evoca tantas coisas ruins das relações de gênero e étnico-raciais ao longo da vida nacional, que fica até difícil enumerar.
Certamente, muito veio à mente de milhões de pessoas quando o presidente da Comissão de Infraestrutura do Senado, Marcos Rogério (PL-RO), decidiu impor respeito desrespeitando o direito à fala da ministra. Tudo porque o Senador Plínio Valério (PSDB-AM) ao cumprimentar Marina disse que mulher merecia respeito, mas não a ministra. O pedido de retratação por parte de Marina gerou as reações que todos viram.
O triste incidente com Marina Silva traz outro terrível episódio envolvendo políticos do norte do país e que completou ontem, dia 28/05, exatos 34 anos: o soco no rosto da deputada Raquel Cândido. Não é de hoje que, quando topam com uma mulher insubmissa, parlamentares de Rondônia dão o que falar …e pensar.
Eu era ainda uma jovem, quando em 28 de maio de 1991, o deputado Nobel Moura (PTR-RO), deu um soco na face da deputada Raquel Cândido, em pleno Congresso Nacional. Em votação secreta, ele foi absolvido de uma suspensão por 30 dias por 216 votos contra, 96 a favor, 13 abstenções e 4 votos em branco.
Tudo começou quando Raquel, depois de mapear o tráfico de drogas no norte do país, citou todos os envolvidos, de delegados a desembargadores, passando por deputados, juízes e outras autoridades. Postada na tribuna, ela começou sua fala condenando o narcotráfico. Nobel se posicionou a um metro de distância da colega e ouviu dela que queriam intimidá-la, mas aquele não era mais um local de campanha eleitoral. O soco veio certeiro.
A Comissão de Inquérito presidida pelo deputado Waldir Pires (PDT-BA) e tendo como relator José Luiz Clerot (PMDB-PB) propôs a perda temporária do mandato, no grau máximo previsto pelo regimento interno da casa, pois a agressão foi considerada “falta grave”. Nem tanto assim para a maioria, que absolveu Nobel por considerar a pena unilateral. Segundo eles, Raquel também deveria ser punida, pois provocou àquele que era seu adversário político em Rondônia. Moura saiu feliz do plenário, abraçando e beijando a esposa que o esperava do lado de fora, e dizendo que iria processar a deputada.
E a ameaça de perseguição se concretizou.
O caso acima, não por acaso, hoje é pouco lembrado. Esta coluna apenas o trouxe como exemplo de como apagar a história é uma forma de perpetuar o poder nas mãos daqueles que desferem socos ou ofensas desmoralizantes, ao invés de argumentos plausíveis. As agressões, mortes, silenciamentos e dores possuem raízes fortes nos crimes impunes e há quem esteja muito saudoso dos tempos anteriores a Lei Maria da Penha, às legislações que condenam a brutalidade contra a mulher e de uma sociedade que tinha na violência de gênero um modo natural de se relacionar.
Em janeiro último, o mesmo senador Plínio disse à Marina Silva: “Imagine o que é tolerar Marina 6 horas e 10 minutos sem enforcá-la?” Ao que a ministra respondeu: “Com a vida dos outros não se brinca. Só os psicopatas são capazes de fazer isso”. No entanto, psicopatas possuem uma patologia enumerada pela psiquiatria. Os homens que a agrediram e os que no passado atacaram a deputada Raquel, são pessoas com moral e éticas forjadas no patriarcado, no desejo de posse, controle, poder. São homens construídos intencionalmente para impor ao mundo a sua lógica única e a arrancar, nem que seja na base do soco e da bala, a sua razão, fortuna e impunidade.
Para os que ficaram curiosos, Raquel Cândido foi deputada pelo PTB de Rondônia, de 1987 a 1994. Uma breve olhada em sua biografia no portal da Câmara dos deputados, dá para entender o porquê de ter sido tão odiada e perseguida, visto que deflagrou a CPI do Narcotráfico e apontou autoridades supostamente envolvidas no assassinato de outro deputado, Olavo Pires, em outubro de 1990. No final, foi acusada de várias infrações pela Câmara dos Deputados, ameaçada de morte e precisou levar a família para outro país. Seu gabinete foi incendiado, a Polícia Federal interceptou uma carta-bomba endereçada a ela, seu marido foi assassinado.
Abalada, Raquel adoeceu mentalmente e atentou contra a própria vida diversas vezes. Foi internada em uma clínica psiquiátrica. Sabe-se que é falecida, porém sem muitos detalhes. Em entrevista à Folha de Boa Vista, em 1994, ela falava que sabia que seria morta quando voltasse ao seu estado e que por isso pensava em antecipar sua partida.
“Não pela perda do mandato, mas pela perda da minha honra”.
O escritor André Soares, que trabalhou com Raquel e relembrou parte desta trama, afirmou: “Pouco se fala dela ou dos casos que levantou envolvendo pistoleiros e coronéis no pior estilo colonial. É tudo estranhíssimo e tristíssimo”.
As coisas sérias do tempo voltam se as ignoramos. A violência tem suas raízes e o Brasil simplesmente as deixa fazer floresta. Por menos socos, ofensas, silenciamentos e vidas arruinadas. Por mais respeito e humanidade.
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