Por Caroline Oliveira — Brasil de Fato
O debate sobre a criminalização do aborto legal, inclusive em casos de estupro, colocou o Conselho Federal de Medicina (CFM) ao lado do projeto de lei que equipara a interrupção da gestação em situações previstas na lei ao crime de homicídio simples.
Em uma sessão de debate sobre o tema no Senado Federal na segunda-feira (17), José Hiran da Silva Gallo, presidente da entidade, falou sobre a proposta legislativa e a resolução do CFM que proíbe que médicos façam a assistolia.
O procedimento consiste no uso de fármacos para interromper as batidas cardíacas do feto antes da do procedimento de retirada do útero, nos casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro.
Gallo afirmou que “a autonomia da mulher esbarra, sem dúvida, no dever constitucional imposto a todos nós, de proteger a vida de qualquer um, mesmo ser humano formado por 22 semanas”.
Tanto o Projeto de Lei 1.904 quanto a resolução 2.378, ambos de 2024, falam em viabilidade fetal acima de 22 semanas e interferem diretamente no entendimento brasileiro sobre o aborto legal.
No caso do projeto, há a previsão de que, “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples”.
Já no caso da resolução, “é vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal (…) nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”.
A assistolia fetal é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em casos de gestação com tempo superior a 22 semanas, justamente por ser frequentemente realizado frequentemente em casos de estupro, nos quais a vítima apenas descobre que houve fecundação muito tempo após a violência sexual.
CFM: histórico de embates com comunidade científica
Esta não é a primeira vez, no entanto, que o CFM toma posicionamentos contrários à comunidade científica. Ainda na figura de Hiran Gallo, o atual presidente da entidade criticou as medidas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de combate à propagação da Covid-19, em fevereiro de 2023.
Na ocasião, ele disse que a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual “jamais pode ser imposta a pessoas que não compartilham de tais ideologias ou comportamentos”.
Antes disso, durante as eleições de 2018, o então diretor-tesoureiro do CFM comemorou a vitória do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas. Na ocasião, Gallo publicou um artigo no site do Conselho Regional de Medicina de Rondônia, seu estado de origem, no qual afirmou: “o apoio ao candidato do PT esteve estritamente ligado à existência de um quadro agudizado pela carência e pela dependência de políticas de governo, como o Bolsa Família. Por outro lado, o desempenho de Jair Bolsonaro foi superior nas localidades com maior IDH, onde a influência dessas ações perdeu força diante da expectativa de medidas que ataquem problemas como o desemprego, a falta de segurança e a corrupção”.
Na mesma época, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, atual tesoureiro do CFM, entregou a Jair Bolsonaro o Parecer n.º 4/2020, favorável ao uso da hidroxicloroquina no tratamento contra a Covid-19, enquanto presidente do Conselho. Por isso, o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid chegou a sugerir uma investigação contra Ribeiro pelo crime de epidemia com resultado de morte.
“A publicação do Parecer n.º 4/2020 se mostrou temerária, criminosa e antiética, razão pela qual faz-se necessária a apuração sobre a responsabilidade de quem o assinou, no caso, o Conselheiro Relator e Presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro”, informou o relatório.
Outro imbróglio envolvendo o CFM foi a filiação do então vice-presidente do conselho, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti ao antigo PSL — fundado por Luciano Bivar e alavancado nacionalmente por Bolsonaro. Hoje, Cavalcanti atua na instituição como 3º vice-presidente.
Mais recentemente, no início deste ano, a entidade abriu uma consulta para saber sobre a percepção da comunidade médica acerca da obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em crianças de até quatro anos.
A consulta, no entanto, foi publicada mesmo após o Programa Nacional de Imunizações (PNI) ter indicado a vacina como parte do calendário de imunização.
O Conselho Federal de Medicina, instituído ainda em 1957 pela Lei 3.268, é uma autarquia pública — uma entidade com atividades específicas da administração pública — com a responsabilidade de fiscalização e normatização da prática médica no Brasil.
Entre as funções atribuídas ao conselho a votação e alteração do Código de Deontologia Médica, que dita o conjunto de regras de natureza ética.
Posicionamento do CFM não é unânime
Arruda Bastos, membro da Coordenação Executiva Nacional e Coordenador da Secretaria Geral da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), classifica a atuação do CFM como “lamentável” e afirma que existem “limites” que vem excedendo suas competências.
“Opinar pela criminalização de vítimas de estupro e sobre a normatização infralegal de temas próprios da Constituição não é prerrogativa do CFM. Opinar sobre a criminalização dos médicos que, dentro do escopo da lei brasileira e de recomendações da OMS, utilizam procedimentos para viabilizar o aborto também não é um papel do CFM. Então é lamentável”, afirma Bastos.
Em 45 anos de profissão, Arruda afirma, no entanto, que esse tipo de posicionamento dentro do conselho vem sendo observados dos últimos oito anos para cá. “O conselho não tinha essa posição. Pelo contrário, o conselho sempre teve, como uma associação médica brasileira, como os conselhos regionais de medicina, com a maioria dos sindicatos dos médicos pelo Brasil, uma visão a favor da ciência, de dignidade, de saúde pública, o que hoje falta”, diz.
Em suas palavras, o CFM “deveria estar preocupado com outras questões”, como o acolhimento às vítimas de violência que engravidam, e “em tratar essa questão do aborto como a questão de saúde pública”.
O médico também garante que esse tipo de posicionamento não é unânime entre as entidades que representam a categoria. “Nós da categoria médica não merecemos ter na direção do CFM colegas que representem o conselho como estão representando. Nós temos que lutar para uma mudança desse quadro, e uma mudança democrática, uma mudança no voto”, afirma.
Os conselheiros federais têm um mandato de cinco anos e são os responsáveis por eleger a direção que irá comandar o CFM pelo mesmo período. A próxima eleição ocorre nos dias 6 e 7 de agosto. Nesses dias, os médicos escolhem um conselheiro efetivo e outro suplente que representarão cada estado do país no CFM. Os eleitos, então, trabalham na composição da diretoria logo em seguida.
Manifestos contra o CFM
Diante da atuação do CFM, a ABMMD publicou o manifesto “Muda CFM”, em abril deste ano. No documento, os profissionais afirmam que “as últimas gestões do CFM se caracterizaram por posições e iniciativas em defesa de uma suposta ‘autonomia’ médica, endossando medidas distanciadas das evidências científicas, baseadas em crenças propagadas no meio digital e alienadas da segurança dos pacientes, dos princípios éticos e das próprias bases da medicina”.
Nesse contexto, a associação propôs um conjunto de mudanças ao CFM, que inclui a “valorização da responsabilidade social e pública do exercício da medicina” e o “resgate da dignidade e ética, valorizando o trabalho médico, com a garantia de condições adequadas para seu bom exercício e em defesa de uma medicina baseada na ciência”.
Não foi o primeiro manifesto contra a organização. Em 2021, médicos cearenses de três organizações diferentes assinaram uma carta pedindo a renúncia da direção do CFM por endossar o chamado “tratamento precoce” contra a Covid-19.
No documento, os profissionais afirmam que a postura da entidade em defesa da “autonomia médica” representou omissão e cumplicidade diante de medicamentos comprovadamente ineficazes durante a pandemia.
“Não resta à atual diretoria do CFM nenhum outro caminho do que a imediata renúncia, em respeito aos médicos, em respeito aos brasileiros. Caso não haja renúncia, que a sociedade encontre os caminhos legais para impedimento ou afastamento. Não há condições morais de essa diretoria continuar”, diz o texto.
A carta foi assinada por integrantes da ABMMD do Ceará, do Coletivo Rebento — Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS e da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP).
Procurado pelo Brasil de Fato, o Conselho Federal de Medicina não se posicionou até a publicação desta reportagem.
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