Por Gabriela Moncau — Brasil de Fato
Serlei da Silva Lima trabalhava na preparação da mandioca na comunidade Resistência Camponesa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Cascavel (PR), quando veio a notícia. Depois de 25 anos como ocupação, a área vai virar assentamento da reforma agrária.
De 1999, quando a área foi ocupada, até 2024, o destino das 71 famílias viveu reviravoltas dignas de filme. Ficaram a uma canetada de ver a área regularizada. Mas aí, com o impeachment de Dilma Rousseff (PT), não saiu.
Depois, ficaram a dias de enfrentar o despejo. Mas aí, com a pandemia, não saiu. Agora, num plot twist, receberam a portaria do Incra.
“A gente ficou quase sem saber o que fazer, a emoção era tanta, depois de tanta luta que fizemos… Comemoramos, choramos, cantamos”, conta Serlei, atual dirigente do Resistência Camponesa, onde vive há oito anos.
Sua trajetória no MST, no entanto, vem desde 1987, quando tinha 19 anos. Chegou no movimento apenas três anos depois que foi fundado, a poucos quilômetros dali, na mesma cidade de Cascavel. Aos 56 anos, Serlei nunca esteve tão perto de ser uma assentada.
Emitida no último 22 de maio, a portaria do Incra informa que a Fazenda São Domingos vai ser adquirida pela União para “fins de reforma agrária”. A área de 479 hectares está registrada no nome da empresa Refopas Agro Pastoril, da família Festugato.
Na trave
O Resistência Camponesa faz parte de um complexo que também inclui os acampamentos 1º de Agosto e Dorcelina Folador. O nome deste último é em homenagem a uma ativista sem-terra que foi prefeita de Mundo Novo (MS) pelo PT antes de, aos 36 anos, ser assassinada com seis tiros pelas costas em 1999.
As três comunidades do MST estão em áreas da família Festugato. Mas foi apenas esta onde está o Resistência Camponesa que, em 2015, os donos de terra ofertaram para vender e o Incra se interessou.
“A compra seria por R$11 milhões e só se justificava se nossa produção fosse agroecológica ou orgânica”, conta Ângela Lisboa Gonçalves. Filha de assentados, se apresenta como “militante sem-terra a vida inteira”. As famílias desenharam seus lotes, se dividiram no território, projetaram as casas, aperfeiçoaram os cultivos. “A gente sonhou muito, foi um período muito gostoso”, recorda.
Mas durou pouco. O governo Dilma (PT) não efetuou o pagamento do terreno antes do golpe parlamentar de 2016, que alavancou Michel Temer (MDB) à presidência. Tudo ficou estagnado até que, com a eleição de Bolsonaro (PL) em Brasília e de Ratinho Jr. (PSD) no governo do Paraná no fim de 2018, o caldo entornou de vez.
Em 2019, o primeiro ano de mandato de ambos, oito comunidades rurais foram despejadas no Paraná. Em 15 de dezembro um documento chegou à casa de Ângela. Indicava qual seria a próxima.
Despejo à porta
A ordem de reintegração de posse foi colocada por seu irmão, Adair Gonçalves, em cima da geladeira. Quando Ângela, na época dirigente da comunidade, chegou, ele avisou: “chegou um papel aí. É melhor você ler sentada. E você vai ter que ser forte, porque as famílias vão esperar isso de você”.
“Foi muito duro. Eu falei para ele ‘Estou sem condições físicas e psicológicas de ser forte’. Ele respondeu ‘mas vai ter que ser'”, conta Ângela. “Ele é muito camponês. Quando vem notícia ruim ele se enfia no mato, passa o dia carpindo. Eu sou professora e escola é só mais problema”, relata rindo.
Segundo ela, o dia da assembleia em que deu a notícia do despejo às famílias foi um dos mais difíceis de sua vida. Seu filho, na época com oito anos, passou a ter pesadelos frequentes.
“Cheguei em casa um dia, tinha uma senhora aqui do acampamento. Ela sentou, pegou na minha mão e falou ‘Ângela, promete para mim que não vai ter despejo. Eu tenho 55 anos, eu não sei ler, não sei escrever. Eu só sei tirar leite, trabalhar na roça. O que eu vou fazer? Para onde eu vou?'”, conta.
“A minha vontade era catar ela e chorar. Eu falei ‘Olha, prometer eu não posso prometer isso. Posso te prometer que a gente vai fazer luta, vamos procurar uma saída'”, diz Ângela. A que encontraram foi fazer uma vigília na entrada do acampamento, nas margens da BR 277.
83 dias de vigília
A ação começou às vésperas do ano novo, em 28 de dezembro de 2019. “Qual era a nossa questão? Demonstrar para as pessoas que aqui era um acampamento, que a gente está aqui desde 1999, que produzimos a vida aqui, que nós temos uma identidade com esse espaço”, explica a camponesa.
“Já tinha todo o plano de ação da Polícia Militar. Seriam cinco mil policiais para tirar as três áreas”, afirma. “E aqui em Cascavel é um lugar de muito conflito”, contextualiza.
Ângela e Adair eram crianças, mas lembram bem do impacto do assassinato de Diniz Bento da Silva em 1993, no acampamento Campo Bonito, onde viviam na época. Conhecido como Teixeirinha, o dirigente do MST foi torturado e morto por policiais.
“Eu tinha muito medo que a gente ficasse na beira da BR, parasse alguém ali e matasse todos nós no tiro”, descreve Ângela. Mas não foi o que aconteceu. Durante 83 dias, das 10h às 15h, os acampados e apoiadores se juntaram ali, cozinhavam e comiam juntos, em defesa do território.
No dia 15 de janeiro de 2020, conseguiram que o juiz responsável pelo processo visitasse o acampamento. Ele percorreu as casas, os cultivos de banana, milho-verde, batata-doce, arroz e mandioca, o carro-chefe. Foi apresentado a 38 sementes diferentes de feijão. E fez um relatório favorável às famílias.
Antes que houvesse uma decisão judicial, no entanto, o mundo foi atropelado pela pandemia de Covid-19. A mobilização de movimentos populares fez com que o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendesse temporariamente todos os despejos do país.
O destino do Resistência Camponesa voltou a ser definido no fim de 2022 quando, sob ameaças de golpe de Estado, o Brasil vivia a acirrada disputa eleitoral entre Lula (PT) e Bolsonaro.
Neste contexto, o MST no Paraná fez um acordo no grupo de mediação de conflitos do Tribunal de Justiça. O Acampamento 1º de Agosto devolveu 190 alqueires de sua área aos fazendeiros, ficando apenas com 10. Os outros acampamentos repartiram parte de seus terrenos para os acampados prejudicados terem onde plantar.
Em troca, em 10 de janeiro de 2023 os proprietários retomariam a oferta ao Incra para que área do Resistência Camponesa fosse comprada pela União para ser destinada à reforma agrária. A autarquia teria 45 dias para responder.
Se não houvesse retorno ou ele fosse negativo, as famílias teriam de deixar o acampamento sob a pena de pagar pela operação do seu próprio despejo.
“Talvez [os latifundiários] tenham calculado que Bolsonaro ganharia e, assim, a reintegração de posse estaria garantida”, avalia, com um sorriso, Armelindo Rosa Da Maia, do setor de produção do MST no Paraná. Se foi isso, calcularam mal.
Procurado, o Incra informa que está atuando “na instrução e análise processual” da área para avançar na estruturação do Assentamento Resistência Camponesa.
Conquista do MST
Em frente à agroindústria de mandioca criada em 2022 e erguida em mutirões voluntários, Adair Gonçalves diz ter dificuldade para explicar “a emoção”.
Se a regularização da área não avançasse, aquele espaço onde 1500 quilos de mandioca são preparados por semana para a merenda escolar do município e do Estado seria mais uma iniciativa perdida, com o resto da comunidade.
“Temos muitas crianças aqui, mas também muitos idosos. Pessoas que lutaram bastante. Alguns conseguiram chegar até aqui. Alguns nós perdemos no caminho”, menciona Adair. “Mas a notícia é muito emocionante. Em alguns momentos a gente quase perdeu a esperança. Mas graças à luta, à organização do movimento e à vontade das famílias, a gente conquistou mais essa área”, afirma.
“Somos filhos de assentados”, fala no plural, incluindo Ângela. “A primeira felicidade foi ser assentado com meu pai, minha mãe, meus irmãos. E a segunda é ser assentado neste outro momento da vida né? Que é uma emoção diferente”, diz.
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