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Juliana Dal Piva

Formada pela UFSC com mestrado no CPDOC da FGV-Rio. Foi repórter especial do jornal O Globo e colunista do portal UOL. É apresentadora do podcast "A vida secreta do Jair" e autora do livro "O negócio do Jair: a história proibida do clã Bolsonaro", da editora Zahar, finalista do prêmio Jabuti de 2023.

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Julgamento caso Marielle: Não deixar que roubem o futuro

Ao deixar o tribuna, refleti sobre a finitude da vida e a consciência das escolhas
02/11/2024 | 06h00

Acompanhar o julgamento dos assassinos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes nessa última semana me obrigou a, uma vez mais, encarar a reflexão sobre o que significa o real exercício da justiça. Mesmo quando criminosos são condenados e as leis são cumpridas, resta a reparação impossível: não há como devolver a vida a alguém.

Ao deixar o tribunal no final da quarta-feira, primeiro dia de julgamento, eu andei em direção ao metrô de volta para casa pensando no que significa justiça, mas também sobre a finitude da vida. Uma reflexão um tanto inevitável também perto do dia de finados.

O crime marcou e transformou a vida das famílias de Marielle e Anderson. Nos últimos seis anos, eu me acostumei a ver essas pessoas na luta pelo esclarecimento do caso. Mas nunca os vi no íntimo, em casa, naquele momento em que só a dor da ausência fala.

“A única justiça possível seria não precisar estar aqui e ter a Marielle e o Anderson vivos”, afirmou Mônica Benício, a viúva de Marielle. Ao descrever o que significou a perda da companheira, Mônica falou que sentiu como se tivessem roubado dela o futuro. A advogada Ágatha Arnaus, viúva de Anderson, também desabafou sobre sonhos incompletos. Contou sobre todas as primeiras vezes que precisou enfrentar sem o marido. Tudo que foi tirado de Arthur, o filho do casal, que tinha só 1 ano e oito meses quando o crime aconteceu.

É impossível passar por uma experiência dessas, o julgamento de um crime brutal, sem sentir dentro de si um pouco da dor dessas pessoas também. Planos, sonhos e desejos dessas famílias foram arrancados pela barbárie da violência carioca como em tantas outras casas dessa cidade. Uma situação totalmente fora do controle no Rio de Janeiro porque o crime faz parte do estado e não há vontade de se enfrentar essa situação realmente.

Mas a reflexão que eu passei a fazer na minha viagem de metrô era sobre o que sim está ao nosso alcance: não adiar a vida e saber o que realmente importa. Soa como clichê e é, mas também é um clichê constantemente esquecido.

Não é incomum passar pela vida achando que temos todo o tempo do mundo para viver nossos dias como se pudéssemos ir riscando os itens numa lista. De modo algum quero dizer que não é necessário planejar. Eu só encarei há algum tempo a realidade de tudo que não controlo que, inclusive, é uma grande parte das coisas na minha vida.

Neste mês, há oito anos, eu e minha família perdemos muitos amigos no acidente de avião da Chapecoense. Cresci em Chapecó e alguns de meus familiares trabalhavam no clube naquela época. Um deles chegou a integrar a comitiva do time na primeira vez que o clube viajou com o avião da Lamia semanas antes do acidente. Por muito tempo, dividi sentimentos por essa coincidência. Senti profundo alívio porque não perdi uma das pessoas mais importantes da minha vida, mas também algo como uma culpa, inexplicável, por acompanhar a dor de quem precisou enfrentar essa tragédia que também causa muita revolta até hoje.

No caso da Chapecoense, como sabemos, sequer houve um acidente. Uma incompetência e uma irresponsabilidade de diferentes órgãos, governos e da empresa Lamia tirou a vida de 71 pessoas de um jeito estúpido.

Esse episódio foi um marco na minha vida. Depois disso, eu nunca mais me despedi de meus pais sem dizer que os amo. Quero que saibam disso. Tento repetir isso com todos a quem amo. Encontrar um momento para verbalizar, dizer. Desejo que todas as pessoas que são essenciais na minha vida sintam essa importância de maneira constante. Não é possível estar perto o tempo todo junto. Mas existem diferentes modos de estar presente.

Óbvio que sou humana e falho. Brigamos com quem amamos? Sim e magoamos também.

Mas sempre há espaço para o reencontro quando há um desejo genuíno por isso. Há de existir lugar para o “me desculpe”, “errei”, “perdão” porque a vida é curta demais para que o ego seja maior do que a vontade de estar perto. Mesmo que essa relação se transforme e aquele amigo, que estava ali o tempo todo contigo, tenha se afastado e depois de um rompimento se converteu em alguém distante por quem você mantém um carinho.

Também sei que existem os rompimentos definitivos. Aquelas pessoas e situações que precisam deixar nossas vidas seja porque fazem mal seja porque já cumpriram seu papel em nossa jornada. O que está em nosso controle? Aceitar sem procurar uma explicação que muitas vezes não existe e, sobretudo, não guardar ou alimentar aquele sentimento ruim, o tal rancor, que é quase uma âncora que te prende ao que deve ficar no passado.

Para mim, é sempre importante ter claro o que importa e, algumas coisas e pessoas, nessa lista mudam com o tempo. Por essa razão, eu me pergunto constantemente sobre o que importa. Não quero ser atropelada pelo passar dos dias respondendo automaticamente à vida sem a consciência das escolhas.

Milicianos retiraram de Marielle e de Anderson esse direito. Mas eu o tenho. Quero estar segura de que, no que estava ao meu alcance, sempre cuidei de tudo que é fundamental para mim. Assim eu procuro cuidar do meu futuro tentando evitar que o meu presente seja roubado diante dos meus olhos sem que eu perceba.

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