Com Igor Mello
A catástrofe climática do Rio Grande do Sul que atingiu em cheio a cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, foi ampliada pela falta de ação imediata da prefeitura local na evacuação do Hospital de Pronto Socorro de Canoas (HPSC), no bairro de Mathias Velho.
Mensagens e documentos obtidos pela coluna, com exclusividade, mostram que a evacuação da unidade, planejada inicialmente para a manhã da sexta-feira (3), foi cancelada por ordem do prefeito de Canoas, Jairo Jorge (PSD-RS), e retomada só na manhã de sábado (4).
Quando a remoção finalmente ocorreu, a água já batia quase no pescoço dos profissionais de saúde. Dois pacientes que estavam na UTI morreram.
Em entrevista à coluna, o prefeito da cidade admitiu o adiamento na transferência, mas disse que, na sexta-feira de manhã, determinou a evacuação de todo o bairro e não soube informar porque a remoção se deu de forma tão lenta.
“Se houve algum problema na ordem de comando, ou, se a avaliação foi retirar mais lento, ou, se essa era a orientação desde o início, é isso que nós vamos apurar”, afirmou Jorge. O prefeito disse que três pessoas foram a óbito no meio dessa remoção.
A transferência dos pacientes foi inicialmente prevista para as 7h de sexta-feira (3), momento em que a água ainda não havia tomado a região do hospital.
Com o cancelamento, os pacientes da UTI só tiveram autorização para o início da remoção na madrugada de sábado, quando a área já era atingida com gravidade pela inundação e o acesso de ambulâncias era impossível.
Como não foi feita a evacuação planejada para a manhã da última sexta-feira, pacientes e profissionais de saúde ficaram presos quando a enchente tomou conta do primeiro andar do hospital.
Tiveram repercussão nacional vídeos de profissionais de saúde carregando pacientes para o segundo andar da unidade, tentando salvá-los, quando a água já tinha atingido mais de 1,5 metro no térreo. Em um dos resgates, bombeiros tiveram que retirar uma mulher por uma fresta de poucos centímetros entre o nível da água e a porta do hospital. Foi nessa remoção que ocorreram as mortes.
Cronologia da tragédia no hospital de Canoas
No início da noite de quinta-feira (2), em um grupo de mensagens de profissionais do hospital, foi informado para a equipe de plantão, por volta das 18h30, que um plano de contingência tinha sido feito devido ao risco de inundação da região onde fica o hospital. O plano previa a transferência a partir das 7 horas da manhã do dia 3.
Também foi enviado um ofício do secretário de Saúde de Canoas, Mauro Sparta, ao SAMU, determinando que nenhum paciente fosse levado para a unidade por conta do risco de enchentes na área.
No entanto, ainda na noite de quinta-feira (2), o planejamento mudou rapidamente. Duas horas depois do anúncio da transferência, às 20h32, no grupo da direção técnica do hospital, uma nova mensagem informou que a remoção da UTI estava cancelada por ordem do prefeito.
“Por ordem do prefeito e com informações adicionais sobre o clima, vamos suspender a operação de transferência da UTI do HPSC, segue o trabalho com a rotina usual”, diz o comunicado.
Mesmo com o agravamento da situação no bairro de Mathias Velho, a situação não mudou. Às 3h39 de sexta a decisão foi reiterada: “Não foram autorizadas as transferências de pacientes”, diz outro comunicado enviado no grupo dos profissionais.
Em entrevista à coluna, o prefeito Jairo Jorge admitiu ter determinado a suspensão do plano de contingência na quinta-feira. Contudo, argumenta que determinou a evacuação de todo o bairro de Mathias Velho na manhã de sexta-feira, por volta das 10h, após realizar uma vistoria no dique do bairro com engenheiros. A partir desse momento, o início do resgate levou quase 24 horas.
Um profissional de saúde do hospital, que conversou com a coluna sob anonimato, contou que já no caminho para iniciar seu plantão, na tarde de sexta, passou por diversos pontos de inundação no bairro Mathias Velho. Se espantou ao chegar no hospital perto das 19h e descobrir que os pacientes ainda não tinham sido transferidos.
A água foi subindo na região do hospital ao longo da noite. Por volta de 1h de sábado, médicos que repousavam no meio do plantão foram pegos de surpresa ao serem avisados que a água já havia chegado ao estacionamento utilizado pelos funcionários, que fica em um ponto mais baixo do terreno do hospital.
O medo de que a inundação do prédio fosse iminente aumentou. O prefeito Jairo Jorge, no entanto, afirmou reiteradas vezes à coluna que nesse momento não havia enchente na área do hospital. “Não tinha água nenhuma [nas imediações do hospital] até às 4:30 da manhã, nenhuma gota”, disse ele.
Contudo, um vídeo feito por médicos às 2h12, mostra o entorno do hospital já sendo tomado pela água.
Em uma mensagem às 03:38 da manhã de sábado, foi comunicado que o secretário de Saúde do município, Mauro Sparta, tinha sido avisado da situação do hospital. As equipes cirúrgicas foram enviadas para seguir o plantão no Hospital Nossa Senhora das Graças.
No entanto, ainda assim, apesar da água já estar tomando a frente do hospital não havia autorização para remoção. “Não autorizadas as transferências de pacientes”, dizia a mensagem, ao final.
Pouco depois das 4h, o dique de contenção do bairro estourou e a inundação aumentou de patamar, com a água tomando o primeiro andar do HPSC.
A transferência dos pacientes só começou nas primeiras horas da manhã de sábado e se estendeu ao longo do dia. A coluna também viu um vídeo que foi feito às 10 horas da manhã quando o CTI passou a ser inundado. O momento mais grave começou a ocorrer pouco depois.
A coluna apurou que, com a necessidade da remoção, os pacientes foram da UTI, que fica no segundo andar, foram levados para a sala vermelha, da emergência, no primeiro andar. A expectativa era pelo resgate. No entanto, o resgate não veio e a água começou a inundar o prédio.
Foi necessário levar os pacientes e todas as pessoas que tinham procurado o hospital como um local de abrigo, novamente, para o segundo andar. Primeiro, a luz começou a faltar, depois, o gerador falhou. O oxigênio começou a ficar em nível crítico.
Em meio a tudo isso, não foi possível transportar as pessoas pelos elevadores e os pacientes precisaram ser carregados pelas escadas. Todos que conseguiram ser resgatados deixaram o local em barcos ao longo do dia e do início da noite.
No meio disso, segundo os profissionais de saúde presentes, duas pessoas morreram. O prefeito informa que foram três.
Jairo Jorge diz que irá abrir uma sindicância para apurar eventuais responsáveis pelo atraso na evacuação do Hospital de Pronto Socorro.
“O prefeito é sempre a responsabilidade máxima”, disse. “A informação que eu recebi é que começou o processo e que eles estavam fazendo de forma mais lenta e que já haviam retirado os pacientes. Essa é a informação que eu tenho. Eu vou determinar investigação. eu sou autoridade como prefeito. Não me eximo das minhas responsabilidades. Quero deixar claro, mas a ordem de evacuação foi dada por mim, às 9h30 da manhã (de sexta)”, completou. “Agora, se houve algum problema na ordem de comando, ou, se a avaliação foi retirar mais lento, ou, se essa era a orientação desde o início, é isso que nós vamos apurar”.
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